na corda bamba entre o cripurizinho e o cripurizão 2001-2003

Cripurizão parece nome de monstro de livro infantil, mas é um garimpo que virou vilarejo nas margens do rio Crepori, um afluente do Tapajós. É distrito de Itaituba e escreve com i enquanto o rio é com e, tipo curitiba e coritiba, mas seja com i, com e, ou com qualquer outra vogal, a corrutela que marca o início, o fim e o meio da estrada Transgarimpeira, foi o lugar onde eu fui amarrar minhas botas em 2002 pra terminar Vaidade, um filme sobre revendedoras de cosméticos no Pará.

Contei semana passada, que quando chegamos no Cripurizão, nosso produtor, dublê de pesquisador e antropólogo Nuno Godolphin, já tinha preparado o terreno e avisado aos que mandavam na área que a gente iria aparecer, os astronautas do rio de janeiro, com câmeras, equipamentos e uma penca de traquitanas. Pra chegar, pegamos um avião monomotor em Itaituba, que também estava transportando um carregamento de frango congelado. Lembro que o Alberto Bellezia, um dos câmeras passou o voo rezando, suando frio e se não estou enganado, com a bunda molhada por estar sentado em cima das caixas de frango. A vila era formada por uma rua principal de terra, com duas ou três ruas paralelas, também de terra e lá no final, o rio, com um pequeno deque que servia de ancoradouro pra algumas centenas de voadeiras que subiam e desciam o rio todos os dias. O hotel, com uma limpeza impecável, ficava na beira do Rio.

em busca do ouro no cripurizão

A rua principal era mais ou menos assim: uma loja de ouro, um salão de beleza, uma videolocadora, um brega (puteiro). outra loja de ouro, outro salão, outra videolocadora, outro brega. De vez em quando aparecia uma vendinha ou a churrascaria do Fofa Toba, um gaúcho que chegou lá nos anos 80 e nunca mais voltou. A imensa maioria dos moradores nos olhava com cara feia. Um ano antes, uma repórter da Isto É foi recebida com festa na cidade. Quando a matéria saiu, era uma super denúncia (correta) sobre prostituição infantil. O dono de um pequeno barranco, um carioca da zona sul me disse, depois de nos ver 3 dias pra cima e pra baixo filmando marreteiras, que nada o faria acreditar que estávamos ali pra filmar revendedoras de Avon. Começamos pelo Garimpo do Iran, onde os garimpeiros tinham aberto uma cratera gigantesca no meio da floresta. Entabulei uma conversa com o maranhense Gilvan:

gilvan: se tem ouro, tá bonito

50% dos garimpeiros vêm por necessidade. Não tem trabalho na rua. Ele acha que aqui é lugar mais fácil de ganhar alguma coisa. Eu mesmo foi por desespero. Foi quando eu conheci o garimpo e me viciei, virou vício. A primeira vez que eu vim, ganhei dinheiro ligeiro. Eu digo é aqui que é o lugar. Garimpo, no meu modo de pensar, é como bebida, um vício. Onde Deus colocou, o peão vai atrás. Botou no fundo da terra o cara vai atrás. Botou na terra, no fundo do rio a gente mergulha vai atrás, Bota dentro da pedra, como tá aqui, a gente vai atrás. Então, ele não é encantado não. Só é meio difícil. Mas a gente acha.

Enquanto eu conversava com ele, outros três garimpeiros usavam jatos d’água para derrubar um barranco gigantesco. A imagem era sensacional, o barro dourado e os jatos, a água refletida pelo sol, se colocássemos uma cabocla com camiseta rasgada em slow-motion teríamos feito um clip do clube do irmão caminhoneiro. E assim se passaram dez, quinze, vinte, trinta minutos e a câmera rodando imóvel, sem mexermos no quadro, acompanhando o trabalho de jateamento. pergunta pros caras quanto tempo ainda leva pro barranco cair, uma hora mais ou menos, então vamos cortar, pode cortar, o fotógrafo apertou o botão e desligou, virou as costas, deu dois passos e o barranco caiu. Nunca vi o Reinaldo Zangrandi tão puto da vida como naquele momento.

garimpo do iran e o barranco desabado e perdido

Os dias foram passando, aos poucos algumas moças deixavam a gente filmar elas se arrumando pro brega, se maquiando, fazendo unha e pé, escova e chapinha. Mas ainda era uma autorização com a guarda fechada, apesar dos esforços do Gilvan para nos integrar no frege. As imagens do garimpo eram muito bonitas, o registro do processo do trabalho, os diferentes ofícios, o rabeteiro, o tatuzão, o mergulhador…tudo ok, mas faltava alguma coisa pra dar um levante naquilo tudo.

rio abaixo rio acima em busca do muiraquitã pro filme
elaine: no cripuri por algum motivo que ficou escondido e esquecido

Num final de tarde uma moça gordinha, com dois atacantes de ouro na boca apareceu tentando vender de modo insistente um produto, não lembro pra quem. A moça era abusada, teimosa e chamou a atenção na hora. Topa falar pro filme? Topo, vamos na minha casa, meu namorado o Zequinha tá pra chegar, eu falo até a hora dele chegar. E lá fomos pra casinha da Simara e quando ela começou a responder a primeira pergunta eu já tinha certeza que nos 44 do segundo tempo, com o juíz já caminhando pro centro de campo, pronto pra recolher a bola e encerrar o jogo, naquele momento eu sabia que tinha a personagem principal do filme:

simara still vaidade/alberto bellezia

No tempo com meus 13, 14 anos era o tempo que tinha ouro mesmo da lavra, ouro, ouro… eu sabia que tinha porque minha mãe, quando chegava do garimpo, essa mãe que me criou… ela chegava com muito dinheiro, muito ouro… chegava com 100, 200, 300 gramas… um dia ela chegou até com 500 gramas de ouro. Mostrava pra nós e vendia, né? Comprava as coisas pra dentro de casa essa mulher que me criou… mas sempre ela não tinha assim uma coisa mais importante comigo porque eu não era filha dela, então ela já me dava as segundas coisa de classe pra mim e as primeiras pras filhas dela, né? Não foi um dia ela disse assim: quando eu vir do garimpo, lá do riozinho, eu vou te dar 3 gramas de ouro pra tí fazer um anel. Eu fiquei contente com aquilo, mas eu já era interessada nas coroas de ouro, eu achava que se usasse uma coroa de ouro eu ia ficar mais bonita, porque eu era uma cabloquinha, assim que ninguém dava bola. Toda pessoa que vê pra mim diz que minha beleza tá nos dentes, todos fregues meus diz: Simara, combina as coroas de ouro prá ti.

simara rodando os baixões

Só pausamos pra trocar de fita. Anoiteceu. Combinamos de cedo no dia seguinte, acompanharmos ela de barco pelos baixões, onde ela iria tentar vender seus produtos pros garimpeiros. E assim foi, fomos para um baixão e Simara onde chegava era uma festa, era barulho, risada, e ela já deitava na rede, fazia piada com todos, sem grandes preocupações. À tarde, ela subiu na moto de Zequinha e entramos na Transgarimpeira onde ela conhecia alguns acampamentos isolados na floresta. O sonho de Simara não era diferente dos sonhos de grande parte das mulheres de qualquer lugar ou classe social. A única diferença é que Simara não escondia de ninguém sua estratégia para chegar lá:

simara e as amigas

O meu sonho era ter uma televisão, meu sonho era minhas amigas entrar na minha cozinha, ver fogão novo, o sonho de uma mulher. Caí na gandaia. Ia pelos baixão passava vinte dias chegava com 70, 60 gramas de ouro, mas só Deus sabe o que eu passava naquelas matas pra conseguir esse ouro. Chegava aqui na Currutela, comprava roupa comprava sapato. Foi aí que eu comecei a pegar perfume da Boticário, comecei a me virar no Baixão e conheci um rabeteiro. O rabeteiro chegou comigo: ah Simara, quero se amigar contigo. Ó Zequinha, tu tá sabendo o que você tá fazendo? porque pra mim morar com um homem, prá mim viver só no de comer, eu prefiro ficar só. E homem que quiser morar comigo tem que me dar tudo que uma mulher merece, tudo de primeira.

freguesia

No dia seguinte, que seria o nosso último dia de filmagem, combinamos mais um dia com Simara. Mas ela sumiu. Pegou uma voadeira e desapareceu cedo pelos baixões. Voltamos pro Rio, eu com um certo frio na barriga, achando que tinha desperdiçado uma oportunidade de fazer um filme. O primeiro filme onde tinha ganho um dinheiro oficialmente, num edital de curta-metragens da Petrobras. A ideia era fazer o curta e com ele tentar levantar o dinheiro para uma versão maior, de 52 minutos, para televisão. O curta ficou pronto, começou a percorrer alguns festivais, ganhou alguns prêmios e passou no programa Curta Brasil, que era produzido e exibido na TV Educativa (hoje TV Brasil) no Rio. O programa ia ao ar todo domingo, depois das 10 da noite, depois do programa de futebol, na linha debate esportivo + os gols da rodada. Aí aconteceu um pequeno milagre. A parabólica do Cripurizão no domingo, só pegava na TVE. E no domingo, ela ficava ligada no bar do gaúcho, pra todo mundo acompanhar a rodada. O programa terminou, a turma seguiu bebendo, a tv seguiu ligada e o Curta Brasil começou e eles viram algumas cenas do garimpo e resolveram acompanhar. Quando viram a Simara, alguém foi correndo pra casa dela, avisar que ela tava na tv. E foi assim que as pessoas do Cripurizão viram, na tv pequena do fofa-toba que o Vaidade não era um filme pra denunciar garimpeiro. Que era exatamente o que tinha dito pra eles que seria.

gilvan curtindo a vida adoidado

Aí veio o segundo pequeno milagre de Nossa Senhora dos Banhos de Cheiros. O Canal GNT estava mudando o perfil de sua programação. Deixaria de ser um canal de documentários para se transformar num canal feminino super bonita e afins. O Vaidade, que disputava um pixulé pra virar média-metragem servia como uma luva nesta transição lenta e gradual: era um documentário retratando um universo quase que totalmente feminino. Consegui o prêmio no Brasil Documenta. E voltamos pro Cripurizão.

Na volta, o ambiente foi outro. As desconfianças tinham desaparecido. Não totalmente, nunca é totalmente. E a Simara estava lá. Sem seus dentes de ouro! Tinha cansado. Em dois anos, tinha ficado um pouco mais séria. Um pouco menos otimista. Um pouco mais melancólica. Tinha sofrido com a malária. Apesar disto, estava se preparando pra conquistar o Suriname e enricar por lá. Com o que ainda restava do seu jeito abusado e bicho solto de ser.

fofa toba, a cachaça made in cripurizão

Ainda passamos por Belém, que naquele momento estava fervilhando no Café Imaginário, o bar mais alucinado do país, onde a pizza de jambu tinha sido inventada e era servida acompanhada de cerpas geladas e outras coisas mais. No café conheci o Pio Lobato, que tinha o grupo Cravo Carbono e comandava a redescoberta das guitarradas. Pio acabou virando parceiro em outros trabalhos também. Aproveitei a ida pra conhecer o Emmanuel Nassar, e usei a tática simara, da entrevista com segundas, terceiras e quartas intenções. Dois anos antes tinha ficado chapado com uma exposição dele numa pequena galeria no Jardim Botânico. Eu queria de algum modo que ele fizesse a abertura do filme. E ele acabou topando, deu uma ideia genial, de usar as garrafas do ver-o-peso girando como num carrossel, e nos rótulos os créditos da equipe. (tem link no post anterior) Anos depois num momento em que a corda girava pro alto, comprei uma tela dele. Depois, quando a corda girou novamente pra baixo, vendi a tela. Ser documentarista é legal. Mas ser documentarista e não saber guardar os trocados é uma merda.

O Nuno Godolphin voltou recentemente ao Cripurizão. Está virando, como previsto, uma cidade. Caótica. Mas são e serão assim as cidades novas do Pará. Me contou que muitas das moças dos bregas agora estão casadas, as filhas casadas e as netas na escola. São donas de salões de beleza ou de algum comércio de suporte para a garimpagem que ainda existe. O ouro tá virando pasto. O gaúcho do Fofa Toba ainda tem a churrascaria, mas virou fazendeiro. Simara não se sabe ao certo por onde anda e se ainda anda pela Terra. Alguns dizem que se meteu com o tráfico. Que foi assassinada. Mas ninguém sabe, ninguém viu.

emmanuel nassar, arraial
emmanuel nassar, estrela em fórmica
um detalhe da abertura garrafada

De vez em quando, algum grupo de vendedores da Avon me pedem copia do filme. Já atendi pedidos de americanos, que achavam o filme um exemplo coach de garra e superação, etc, etc. Em 2022, um grupo pra lá de interessante de arquitetos da USP-São Carlos, do LEAUC me chamou pra ir lá, exibir o filme e conversar. Foi ótimo ver o Vaidade depois de 20 anos. Me deu até vontade de transformar ele num longa. Tem material pra caramba que ficou de fora. Muito ouro.

É isto moçada. Domingo tem mais, com a já tradicional, famosa e consagrada playlist da cordabamba. Amor, paz, remelexo, bole bole e se der, algumas gramas, ou melhor, algumas pepitas de ouro pra todo mundo. A corda agradece nunotrix e guilherme kato que nesta semana resolveram entrar pro bloco.

LINKS! LINKS E MAIS LINKS!

Enquanto meu canal do youtube não volta à ativa, a versão curta de Vaidade pode ser conferida aqui: https://canalcurta.tv.br/filme/?name=vaidade

Se alguém estiver com vontade de dar um rolê pelo Cripurizão, aqui vão as coordenadas; https://www.roadonmap.com/br/onde-est%C3%A1/Cripuriz%C3%A3o-Itaituba,pa

Um link para o disco do Cravo Carbono, do Pio Lobato, disco do começo desta cena paraense que, ainda bem, continua rolando e se transformando:

O filme de Vitor Lopes, Serra Pelada, A Lenda da Montanha de Ouro, que trata especificamente do garimpo, contando a história do maior deles até hoje, Serra Pelada.

o trailer de O tesouro de Sierra Madre, de John Huston, 1948, clássico obrigatório: ambição, cobiça, vaidade, quase todos os pecados capitais em um drama com Humphrey Bogart e com Walter Huston, tão bom no papel que levou o Oscar.

uma crítica de O tesouro de Sierra Madre, de John Huston, 1948

https://www.planocritico.com/critica-o-tesouro-de-sierra-madre/

a página de emmanuel nassar na galeria milan:

https://www.millan.art/artistas/emmanuel-nassar

uma receita de pizza com jambu:

https://cozinhadalala.blogspot.com/2008/09/pizza-de-jamb.html

e a página de fb do LEAUC da USP-São Carlos

https://www.facebook.com/LaboratoriodeestudosLEAUC/

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