Na Corda Bamba foi pensado inicialmente para ser um podcast, o VTNC, um programa de rádio semanal onde por duas horas eu iria mostrar às multidinhas o que sei fazer de melhor: reclamar da vida, blasfemar e praguejar. Entre uma ou outra maldição, músicas do balacobaco. Um podcast com este nome singelo VTNC e vendedor VTNC, vindo de uma mente empreendedora como a minha, seria sopa no mel e rapidamente eu estaria metendo a mão no cacau e não mais falando somente para as multidinhas. Mas meu infalível senso para os negócios e o meu amor ao dinheiro me empurraram para cá.

Após duas ou três postagens, meu amigo Márcio Pinheiro me escreveu: tá tudo muito bom, mas quando é que você vai parar com este memorialismo barato e começar a falar do que está acontecendo agora? Pode ser, por que não, o cliente tem sempre razão, temos que ir onde o polvo está e eu, como homem do meu tempo que sou, fui na banca e pedi os jornais do dia. O jornaleiro não se conteve e chorou nos meus braços de tanta emoção. Com minha supersônica leitura dinâmica, em poucos segundos eu já estava atualizado:
-O estadão atualmente está condenando o MST
-O globo atualmente está condenando o PT
-A folha atualmente está condenando o MST e o PT
Os três principais jornais do país estão fazendo o que sempre fizeram de melhor: reclamando, blasfemando e praguejando contra a esquerda. Nada como o presente, onde tudo é novidade! Sagaz que sou, me aproveitei de uma das notícias da semana, a explosão do foguete do dono do twitter, para mais uma vez, escrever sobre o passado.

Em 1999, o jornalista Paulo Vasconcellos resolveu pesquisar como o Jornal do Brasil, onde trabalhava, tinha feito a cobertura da chegada do homem na lua. Encontrou uma preciosidade chamada Carrapateira tem Ciúmes da Apollo 11, feita trinta anos antes pelo jornalista Mario Lucio Franklin, que tinha ido à Carrapateira, cidade na Paraíba apontada pelo IBGE em 1969, como a mais pobre do Brasil. O orçamento da NASA para fazer o Neil Armstrong dar seus pulinhos no solo lunar tinha custado 33 mil vezes mais do que o orçamento anual de Carrapateira, onde a grande maioria da população era analfabeta e onde Dona Nila, uma jovem professora que recém tinha concluído o primário, se esforçava para ensinar as crianças na sala de aula improvisada em sua casa. A luz elétrica ainda estava para ser instalada e a matéria listava todas aquelas velhas mazelas que conhecemos muito bem: seca, fome, miséria, subdesenvolvimento, êxodo rural, retirantes… Quando terminou de ler, Paulo Vasconcellos sabia que tinha uma nova matéria pronta, só faltava convencer sua editora e viajar pra Paraíba. Ele conseguiu e 30 anos depois encontrava uma cidade apinhada de antenas parabólicas, com uma pequena agência dos correios que servia como banco também e uma falsa aparência de progresso. Reencontrava dona Nila, agora com as netas na escola. E ela já não tinha mais ciúmes da Apollo 11. Em 1999 eu parei numa banca de jornal da rua Voluntários da Pátria, comprei o Jornal do Brasil e cinco minutos depois eu sabia que tinha um filme pronto, só faltava conseguir a autorização do autor da matéria e o dinheiro para viajar pra Paraíba e fazer o documentário Carrapateira não tem mais ciúmes da Apollo 11.

O dinheiro veio de um edital do Itaucultural, Brasil 3×4, e logo depois do natal de 2003 eu estava chegando em Carrapateira. Cheguei e fiquei os primeiros três dias no banheiro, resultado de uma buchada em Campina Grande. Depois de litros e litros de suco de goiaba, purê de batata e os cuidados de uma enfermeira recrutada em Cajazeiras, consegui ir pra rua. A ideia era esquadrinhar a cidade. Filmar a escola, a prefeitura, o posto de saúde, a agência dos correios, a delegacia. Não tinha hotel na cidade, havia uma hospedagem, onde estávamos instalados. Os aparelhos de ar condicionado dos dois únicos quartos tinham sido levados pelo filho do prefeito para refrescar outras paragens. Também iria ouvir a cidade: os velhos personagens que estavam presentes nas duas reportagens, a de 69 e a de 99, e ainda, crianças, adolescentes, comerciantes, funcionários públicos, agricultores. Comecei com Dona Nila, que juntou a filha e os netos para o depoimento.

Quando eu era professora não existia nenhuma sala de aula feita pelo estado… Nos anos 60 ninguém era funcionário. Só se vivia do que se colhia da terra. O arroz, o feijão e o milho… Era assim que a gente sobrevivia. Eu não, porque meu pai era escrivão do registro civil. No tempo que meu pai era escrivão, contava o dia que não morria uma criança ou duas. Por falta de uma farmácia, por falta de medicina, por falta de muita coisa.
Jornal do Brasil foi um espanto né? Espanto pro prefeito, pro pessoal da cidade. Todos acharam aquilo tudo difícil, como era que o homem podia ir à lua, teve um deles que falou, e a chuva? Como é que vai atravessar na chuva? Hoje a maioria das pessoas acreditam, hoje tem a televisão, que informa bem. Nesse tempo não existia era nada, só aquele rádio velho ABC e mesmo nem isso informava.

Zé Galdino, pequeno agricultor, lembrava da visita de 1969:
Eles vieram pra ver como era a cidade. A cidade nesse tempo não tinha calçamento, era meio estiorada, mas eles foram bem assistido. Vieram pra passar uma semana, passaram bem duas. Eu recebi eles aqui em casa, como eu tô recebendo vocês. Eu tinha uma vacaria que tirava leite, e eles disseram que queriam tomar leite de vaca, né? Aí eles tomaram leite, perguntaram o que eu fazia do leite. Eu disse: O leite eu não vendo não, eu dou as mães de família, pra criar os filhos. Porque pra gente vender, não tinha como a gente receber porque elas não tinha condição de pagar, né?
Ele também tinha muita clareza sobre como agir catando as migalhas do coronelismo político, que de algum modo, sempre sobrevive:
Porque nós “veve” num município muito carente, né? Nós se adoece um doente aqui a gente precisa levar pra João Pessoa. E se a gente não tiver um deputado lá pra receber aquele doente, aí fica mais difícil. Pra isso eu voto de graça num deputado. Eu sei escolher meu candidato de eu votar, nunca deixei de votar, eu sempre voto. Nós tem hoje um deputado, se adoecer uma pessoa aqui, chega lá, às vezes cobra uma operação de 5 mil real, o deputado arruma de graça, ele paga do bolso dele e age com aquele cliente dele, né? Devido a situação da gente, que a gente não votou vendido. Quando você se vende, não tem o direito de cobrar.

Em Carrapeteira, aposentado era rei, e mesmo rodado, era um bom partido:
Se não fosse os aposentados do município era mais difícil pra viver, né? Se acabar essa aposentadoria, também pode botar logo uma guerra do Iraque pra matar logo tudo. Porque vai viver de quê, né?
A medida que ia entrevistando os velhos moradores, fui percebendo que quase todos, em algum momento de suas vidas, tinham ido para São Paulo. A lua para os carrapateirenses, era em São Paulo. Galdino tinha trabalhado nos cafezais do Paraná, depois foi pra São Paulo onde colocou o primeiro para-brisa de um Aero-Willys em 1963. Depois trabalhou em fábricas de cerâmica, até cansar e voltar para Carrapeteira. Zé Pereira tinha ido nos anos 50, assistiu Getúlio desfilar por São Paulo no quarto centenário, estava no ABC quando JK inagurou a Wolks e se lembrava com alegria da noite que encontrou Zé do Norte em um ônibus do Parque Dom Pedro:
Uma hora da manhã peguei o ônibus lá no Parque D. Pedro em São Paulo e entrou aquele galegão forte. Aí o colega dele disse: esse rapaz parece que é de lá da sua terra. Aí foi e me perguntou. Disse amigo véio, de onde é? É nordestino? Eu digo: sou. Ele disse: de onde? Eu digo: eu sou de Carrapateira. Ele disse: Mas rapaz!! Você é de Carrapateira?! Conheço Carrapateira demais! Eu sou de Cajazeiras. Você já assistiu o filme de Lampião? Eu digo: eu assisti muitas vezes. Ele disse: Pronto, você não vê aquele da sanfona? Eu digo: é, na hora que o senhor entrou aqui eu conheci que era o senhor tocando no filme de Lampião.

O irmão de Zé, Joel Pereira era operário na Scania, quando aconteceu a primeira greve em 1978. Ele me mostrou uma foto em que aparecia no meio da multidão grevista:
Essa foto aqui mostra um dos nossos movimentos lá no ABC, em protesto contra uma proposta do governo, de reduzir as horas trabalhadas, mas com redução de salário.Foi a primeira greve, primeiro movimento sindical no país, foi na Scania, após a revolução de 1964, que era proibido pelo regime militar. Oito horas mais ou menos já tava toda paralisada a empresa de ponta a ponta, toda a Scania inteira, parou. Aí depressa Lula se deslocou de lá, a diretoria já chamou ele pra negociar com os trabalhador, todo mundo parado. A firma concedeu um reajuste pra nós, no mês seguinte e nós voltava ao trabalho. Aí a gente promoveu uma festa lá. O Pessoal da Comissão de Fábrica convidou o Lula né ? Ai ele passou esse dia “mais nós” lá.

A medida em que ouvia estes depoimentos, eu percebia que iria rebolar com o orçamento. Eu sabia que existiam imagens do Getúlio desfilando por São Paulo durante o Quarto Centenário em 54, que existiam imagens da JK inaugurando a Wolksvagen e das greves de 78 no ABC. E claro, do Zé do Norte cantando Lua Bonita no filme do Lima Barreto.


Em Carrapateira eu usei vários artifícios para tentar relacionar a conquista do espaço com a cidade. Levei uma luneta, que colocamos no ponto mais alto da cidade e convocamos os moradores pra olhar e comentar. Levamos brinquedos para as crianças reproduzirem a conquista do espaço. Projetamos na parede da igreja os filmes da chegada do Homem na Lua, do Viagem à Lua do Méliès, do ET do Spielberg e o sucesso de público e público: Os Trapalhões na Guerra dos Planetas. Mas o que causou efeito na cidade foi um concurso de redação, que fizemos com as crianças da escola municipal. O tema, claro, era a chegada do homem na lua. Nas primeiras leituras, já dava para perceber que os pais estavam mandando recado pelas crianças.

Nessa cidade as coisas não mudam e não se transformam e tem algumas pessoas que não usam a sua cabeça para pensar.
Carrapateira é uma cidade que tem muitos analfabetos, porque não teve como estudar e outros porque não quiseram. O único emprego que Carrapateira oferece é a roça.
A minha cidade é muito ruim porque o prefeito daqui quando o Governador Cássio manda o dinheiro, ele come todo e não paga a ninguém. E ele vai para a Bahia e também para João Pessoa tomar banho de praia.

Para os adolescentes, a perspectiva de futuro em Carrapateira não era muito animadora:
O homem ir na lua foi bom. Fez novas descobertas, sempre abrange novos horizontes. A tecnologia ficou mais avançada, a modernidade. se completou mais. Os jornalistas vieram aqui, eu acho que eles sabiam como era aqui. Alguém disse que aqui, nesse tempo, era a cidade mais pobre do Brasil, né? Aí naquele jornal falando: A lua pra cá veio primeiro que a luz elétrica. Eu acho que eles meio que sabiam o que iam encontrar aqui. Se você pensar que o homem foi à lua e aqui não tem nem energia. É coisa bem estranha.
Porque a tecnologia daqui, né? Aqui não tem computador. Tem, mas é pouco, não é pra todo mundo. Tem na secretaria de Educação, na Secretaria de Saúde eu acho que também tem. Mas poucos, menos de 5.

Curiosamente, a cidade não era violenta. A cadeia estava vazia e o trabalho de Cabo Souza era apartar uma ou outra briga de cachaça. Mas ele tinha na memória os saques aos supermercados, quando a fome apertava e a população inteira ficava sem ter o que comer. No final de 2003, Carrapateira só não tinha saques por um motivo muito simples: o Programa Bolsa Família. Quem contou foi a assistente social Edvânia:

Eu tenho uma população em torno de 478 famílias. Eu já tenho cadastrado no meu computador 358 famílias. Então eu tô com mais de 60% da população cadastrada. São considerados bem de vida aqui na nossa cidade aquele que ganha um salário mínimo… Uma vaquinha, vende um leitinho, pronto, já é fazendeiro. Não existe isso não. Não tem rico no nosso município não.



Chico Prego me contou que se tivesse dinheiro não ia pra lua, que não ia ficar flutuando que nem uma pena de galinha. Também me disse que o solo da lua era parecido com o solo do sertão. Vanessa me contou que tinha 17 irmãos. Zé Cosme me disse que a lua era uma peneira de filtrar pensamento e que do chapéu pra cima, só ia quem morria. Zé Cosme sabia dizer se iria chover dependendo do modo como o sol baixava na serra no dia 08 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. Edval plantava no seco e na esperança. Se chovesse, vivia o ano. Se não chovesse, perdia tudo. As irmãs Damiana e Damiana sonhavam muito. Uma com um uma chuva de pedrinhas prateadas que caía do céu. A outra que tinha tirado o bilhete premiado da telesena e que finalmente iroa sair daquele buraco do caboré.


Passei o ano novo de 2003 para 2004 em Carrapateira. Junto com grandes amigos: Reynaldo Zangrandi, Alberto Bellezia, Nuno Godolphin, Laís Rodrigues e PH Silva. Tomamos uma cidra doce e fomos pra festa da cidade. Em 2004 choveu em Carrapateira. O filme passou na TV Cultura e depois passou no MOMA em NY, no Input em São Francisco, no Festival de Havana e no Festival de Biarritz. Para o meu orgulho, até porque era leitor do jornal, o filme virou matéria no JB. Por curiosidade, entrei no site da prefeitura da cidade, tem um trecho do filme na página. Fiquei com preguiça de pesquisar os dados atuais da cidade. Primeiro porque o censo do Guedes não é confiável. Segundo, porque qualquer indicador pós-golpe deve ter levado a cidade de volta ao passado. Mas coloco aqui alguns dados que usei no filme em 2003:
Em 1969 chegar a Carrapateira era uma aventura comparável a da Apolo 11. Os 400 Km que separam a cidade do município de Campina Grande levavam até 10 horas para ser percorridos. Hoje restam 35 Km de estrada de terra, o suficiente para manter o lugar isolado.
O calçamento de paralelepípedo chegou em 1977, a água canalizada em 1993 e abastece somente 60% das moradias. A cidade ainda não tem rede de esgoto nem agência bancária. Tem alguns telefones públicos e um posto dos correios. Em 430 das 450 casas da cidade o tijolo substituiu a taipa. A população pulou de 1600 para 2094 habitantes.
A taxa de analfabetismo atinge 42% dos adultos. Não existe escola de ensino médio, e jovens como Heber, Nara, Mara e Rayane percorrem diariamente de caminhão 70 km de estrada para estudar. A desnutrição ainda é alta e 20% das crianças de até um ano de idade sofrem com ela.
A cidade depende do dinheiro do fundo de participação dos municípios mas em dezembro de 2003 funcionários da prefeitura estavam com 4 meses de salários atrasados.
Em 2000 Carrapateira deixou de ser a cidade mais pobre do Brasil. Ela passou a ocupar a posição de número 5497 entre os 5561 municípios brasileiros.
Em 2003 uma explosão destruiu um foguete na base de Alcântara, no Maranhão, sede do Programa Espacial brasileiro. 21 cientistas morreram.
Os bancos que operam no país tiveram o maior lucro de sua história.


Levei para Carrapateira, algumas reportagens dos anos 60, com previsões de como seria o mundo no futuro. Pedi para os moradores que lessem algumas delas:
Em 1975 haverá controle químico contra as taras hereditárias.
Em 1975 haverá uma base lunar temporária
Em 1980 veículos tripulados sobrevoarão Marte
Em 1990 haverá controle do tempo
Em 2005 o homem vai se comunicar por telepatia
Em 2010 o ser humano vai se comunicar com um extra-terrestre
Em 2010 uma nave tripulada chegará a Plutão e haverá salto no tempo
Enquanto eu não conseguir saltar no tempo, eu vou continuar por aqui, entre o rame-rame cotidiano e as memórias baratas de um passado torto, pero divertido. Daqui algum tempo, este rame-rame de hoje também será lembrado como divertido. É isto macacada! Vivam bem em qualquer tempo. Domingo tem playlist. Beijos, abraços e aproveitem o feriado para tirar o pai da forca.
LINKS! LINKS E MAIS LINKS!
meu canal do youtube continua fora do ar. enquanto isto, trechos de carrapateira no vímeo:
O Cangaceiro de lima barreto, que tem Zé do Norte cantando Lua Bonita. O filme ganhou prèmio em Cannes e durante muito tempo foi um dos maiores sucessos internacionais do cinema brasileiro.
Viagem a lua, de méliès. ófuturo muito antes do futuro.
os trapalhões pegando carona com darth vader:
um trecho de eu vou pra lua, que conheci com chico prego:
Eu Vou pra Lua
Autores: Luís Boquinha e Ary Lobo
Intérprete: Ary Lobo
Ano de lançamento: 1960
[…]
Eu vou pra Lua, eu vou morar lá
Sair no meu Sputnik do campo do Jequiá.
Já estou enjoado aqui da Terra
Onde o povo a pulso faz regime
A indústria, o roubo, a fome, o crime
Onde os preços aumentam todo dia
O progresso daqui é a carestia
Não adianta mais se fazer crítica
Ninguém acredita na política
Onde o povo só vive em agonia…
Eu vou pra Lua, eu vou morar lá…
[…]
Trecho de “Eu Vou pra Lua”, de Luís Boquinha e Ari Lobo, na voz de Ary Lobo

e o campo do jequiá, descobri hoje, ficava no recife:
e preconceito, com orlando silva, música que zé pereira cantou pra gente no filme:

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