na corda bamba em são paulo e o dia em que um oba oba do sargentelli salvou meu dia.

Tinha 15 ou 16 anos quando vim à São Paulo pela primeira vez. A cidade era escala para uma ida ao Rio, onde ia rolar um congresso de reconstrução da UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). Desci com um amigo da Libelu na rodoviária pastilha dulcora da Luz e pegamos um busão até a casa onde ficaríamos hospedados e onde receberíamos instruções de como agir no Congresso. A casa era incrível, cheia de livros e discos inacessíveis para mim naquele tempo (Miles, Zappas, inéditos e importados) habitada por um casal bonito, não lembro se ela ou ele eram americanos, e a gente não podia falar nossos nomes de verdade, então eu era o camarada Zumbi, que no dia seguinte aproveitou pra andar pelas ruas de São Paulo, e andou, andou, andou e perdeu o papel com o endereço onde tava, e pegou um ônibus que tinha o mesmo nome (em porto alegre, eles iam e voltavam no mesmo trajeto) e foi parar num lugar que se parecia com todos os lugares que ele tinha andado e se eu não chegasse em casa ia perder o ônibus pro rio e então depois de pensar muito, mas muito mesmo, entrei numa delegacia, contei que tava perdido, o policial me perguntou um ponto de referência e eu disse que era o oba oba do sargentelli. qual deles, tem dois, um é na paulista. na paulista eu tenho certeza que não é. um outro policial apareceu com uma emergência, o policial me olhou e disse que ia passar perto que me deixava lá. e foi assim que o clandestino de meia tigela entrou no banco da frente do camburão veraneio, ganhou uma carona de um cana maneiro e chegou à tempo de pegar a mochila e ir pro rio. não lembro até hoje onde ficava este oba oba que não era na paulista e não encontrei na internet. valeu sargentelli!

valeu sargentelli

Apesar das minhas tentativas, nunca mais andei num veraneio da pm. Nem no banco da frente e muito menos no detrás. São Paulo sempre era aquela cidade muito grande onde eu me perdia. Nos anos 90 passei alguns períodos por aqui, tentando virar diretor. Curiosamente, morei no mesmo bairro, só que do outro lado da avenida domingos de morais, o que por aqui tem um simbolismo quase pra lá e pra cá da ponte, mas só quase. E mesmo conhecendo gente pra lá de bacanuda, eu nunca entendia como as pessoas preferiam, quando o trabalho acabava, ficar três horas no trânsito. Tinha muito menos metrô. Eu dizia, vamos pro bar, gastamos pelo menos duas horas bebendo e depois vocês vão pra casa. Vão chegar na mesma hora. Não tinha lei seca. Necas. Resumindo: achava a cidade chata pra caralho.

a incrível rodoviária bala dulcora

Mas um belo dia eu conheci uma moça e mudei pra São Paulo. E nunca mais saí . Pro azar dela. Como moramos na Saúde, eu sigo (dica dela, da moça que casou comigo) no facebook o grupo Mirandópolis, Vila Clementino, Saúde, Chácara Inglesa e Planalto Paulista. A maioria das pautas são de serviços: procuro marceneiro, quem faz carreto até guaratinguetá, meu gato sumiu, a academia de kung-fu da luis góis ainda funciona? Manicure, pedicure, pizza, salgados para festas, recreadores, advogados, babás, chaveiros. Tem a ala dos guardiões do templo, aqueles que vivem emitindo os alertas de roubos e assaltos, sou do tempo em que andava de madrugada na dr.altino, eu caminhava até a cinemateca e não acontecia nada, agora até na frente do shopping tem assalto. Ainda tem uma ala de memorialistas, que contam desde sempre com a minha simpatia e gratidão, estes postam fotos da rua loefgreen em 1930, ou da procissão de santa rita em 1963.

amenidades cotidianas

Mas eu gosto mesmo é de encontrar as notícias sobrenaturais cotidianas. Aquelas que jamais vão aparecer no Datena e muito menos na Folha ou no Estadão. Tipo esta, destes dias, do galo desaparecido na Avenida Democratas.

o galo desaparecido e encontrado da av. democratas

Também gosto de saber que existem Enzos com sobrenomes japoneses. Enzo Matsubara, dentista. Enzo Mifune, mecânico. Não há nada de sobrenatural nisto. Mas tente chamar algum personagem seu de Enzo Fujimori e jogo como não vai levar 5 minutos para os idiotas da verossimilitude aparecerem com leopoldos misakaias e bartolomeus sasaharas nas mãos. Mas a Saúde tem disto: restaurante árabe com proprietário japonês e japonês que casou com uma parisiense e ainda conseguiu uma façanha notável: convenceu a moça a trocar Paris por São Paulo. Mas estamos falando de trocar Paris pela Saúde! Acho que está dando certo. A moça abriu uma pequena creperia. Muito boa, por sinal. O bairro tem um lance meio vila, meio roça, meio interior sem ser interior. Tem barbeiro gurmetizado e barbeiro normal, que só corta cabelo. Tem pastelaria, feira livre, loja de fresco, loja metida, loja de quinta. Tá perto da cinemateca, do insitututo biológico e do MAC. Tem ruas com nomes que não temos a menor ideia de quem foram e ruas com nomes de flores que não temos a menor ideia que são flores.

ruas com nomes floridos

Tem o estranho fenômeno da transformação do olhar, que muitos atribuem simplesmente a capacidade extraordinária de adaptação do ser humano. Quando eu cheguei por aqui eu nada percebi, e não tava nem tentando entender. Achava tudo um horror, um grande Meier sem o túnel pra ligar ele com a Lagoa na outra ponta. Aí você começa a caminhar pelas ruas. Começa a descobrir a confusão escondida pela fachada de ordem aparente. E quando você percebe, já nem acha mais aquilo feio, até acha algumas coisas bem bonitas. O bairro, assim como todo o resto da cidade, está em total transformação. Casas são demolidas e prédios novos são construídos. Prédios velhos são derrubados e prédios novos são levantados. Nem vou gastar o tempo aqui comentando a arquitetura, a imensa maioria das novidades são medonhas.

a casa que não conseguiram demolir

E se eu passei a achar o feio, bonito, também teve boteco ruim que passou a se achar bacana. O Miltinho, na esquina da minha casa é um exemplo impressionante de reposicionamento da marca. Passei várias noites de sábado sonhando com uma bazuca, enquanto o Miltinho massacrava a vizinhança com música ruim em todos os estilos: sertanejo, samba, pop, rock, funk, nada se salvava. Antes de completar a história da transformação do Miltinho, é importante contar aqui, que até o nascimento do Antonio, eu era apenas um cliente qualquer em qualquer comércio do bairro. Quando Antonio nasceu, eu virei o pai do Antonio. E quando o Vicente nasceu eu virei o pai do Antonio e do Vicente e ainda adquiri o direito de pendurar a conta nas emergências. Voltando ao Miltinho. Aos poucos o repertório foi mudando. Música ao vivo. Samba. De vez em quando bom, de vez quando medonho. Forró. De vez em quando bom, de vez quando muito ruim. Gosto quando vai na linha Genival Lacerda de trocadilho bagaceiro. O problema, quase sempre, é o teclado eletrônico, diplomado na escola chiclete com banana de executar sempre as piores sonoridades do instrumento. Teve um sábado onde um cara sozinho tocava guitarra (bem), pilotava um combo de teclados e samplers e cantava um repertório inacreditavelmente inusitado: telstar, temas obscuros de novelas das sete dos anos 70 e canções românticas que nunca tocam na antena 1. E uma noite destas, o Miltinho tocou Bob Dylan e Bob Marley no volume máximo. Corri pra varanda, achei que o Bar estava sendo assaltado por motoqueiros fantasmas ou por salassiês extraterrestres. Nada. Eram só os ventos mudando.

o miltinho fica na esquina, no lado esquerdo desta foto

Aí o churrasquinho feito na calçada ganhou um carrinho mais cheio de chinfra e o happy hour começou a bombar, misturando os velhos moradores que resistem à gentrificação, a nova classe média, os novos jovens com caras de luan santana, as moças replicantes de anitas, as gerentes de leiaute comercial e eu. Que tive que ceder aos baixos instintos alimentares de meu filho mais novo, que não resiste nunca a um espetinho quando volta da escola. Pronto, agora o Miltinho, que me viu passar em silêncio pela calçada, que viu os guris crescendo, agora tira onda com a minha cara: pega espetinho pros moleques, rapaz! O Miltinho este ano está disputando o prêmio comida de boteco. Amanhã vou lá votar na batata rendada.

pastel e espetinho para as massas

O bairro está mudando. É um reduto de classe média, a maioria paneleira. Uma maioria que ficou em silêncio com a volta de Lulão das massas. No meu prédio, só eu e Miriam gritamos e comemoraramos na varanda. Os funcionários todos votaram 13. Mas é um bairro que ainda tem, em quase todos os quarteirões, casas mais modestas, mais humildes, e em muitas delas é possível perceber que a decadência é falta de dinheiro mesmo. O quarteirão já tem os seus moradores de rua fixos. Com a benção da Faria Lima e do mercado.

Hoje quando chego na divisória Vila Mariana-Paraíso, já me sinto num exílio de Gonçalves Dias. Como me sentia quando saía de Ipanema há uma década atrás. Tudo isto porque no meio do lago tinha uma cabra.

cabra no lago, na praia, na saúde

É isto rapaziada! paz, amor, ziriguidum e telecoteco. quem já assina a corda, por favor, divulgue! ela paga alguns espetinhos no miltinho! domingo tem a sensacional playlist, com provocações sinceras e muitas maravilhas pra ouvir no primeiro de maio. Paz!

LINKS! LINKS E MAIS LINKS!

Sargentelli cheio de skindô, ziriguidum e telecoteco: https://cemporcentosamba.com.br/osvaldo-sargentelli/

Uma linha do tempo com a história da UBES: https://ubes.org.br/memoria/linha-do-tempo/

Um surpreendente livro reportagem lançado em 2008 pela Vanessa Bárbara, uma carioca, que onde eu sei, também mudou para são paulo, sobre a rodoviária de são paulo. o livro é bom de ler e bom de olhar. https://www.sesispeditora.com.br/produto/o-livro-amarelo-do-terminal/

O grupo mirandópolis. um mundo de banalidades, platitudes, pequenos negócios e algumas notícias inacreditáveis: https://web.facebook.com/groups/2029846110630929/?hoisted_section_header_type=recently_seen&multi_permalinks=3548586275423564

quer ir no Miltinho? então vá: https://www.instagram.com/bar_.do_miltinho/

e depois, ande meio quarteirão e vá na robataria, o meu restaurante favorito na cidade: https://robatariaoficial.goomer.app/about

e pra encerrar: o disco de sartentelli de 77

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