Grande dia! Grande dia! Tão grande que nem sei exatamente sobre o que vou escrever por aqui. Se sobre algum rame-rame cotidiano ou se sobre alguma presepada minha do passado. Sobre a rodada do último fim de semana, com as vitórias do Grêmio (num jogo medonho) e do Botofago (num jogo lindo). Sobre as oito horas seguidas que passei na frente da tv assistindo A diplomata embasbacado com a Keri Russel. Minha vontade é de ficar zapeando nas redes fazendo uma seleção top ten dos memes com o zé gotinha. De ficar enrolando, empurrando com a barriga num transe siderado terapêutico que é ver o cramulhão e suas duartes amestradas chorando e se borrando nos grupos zap zaps. Grande dia! Mas a luta continua. Ainda estamos cercados de zumbis jovempanizados e dos velhos fantasmas de sempre. Gilberto Gil disse que agora é hora de ficarmos somente com o melhor de nós. De cultivar a paz. Como eu não chego nem na sola do sapato do baiano, sigo por aqui, cheio de raiva e com sede de vingança. Não a vingança assassina miliciana, mas aquela de filme de tribunal, doido pra ver a turma do varandas entrando cabisbaixa na papuda. Enquanto isto não rola, neste grande dia eu vou destilar platitudes e trapalhadas por aqui. Como a do ano em que passei grande parte dele me coçando sem saber porquê.
Passei o ano de 2012 praticamente todo viajando. No primeiro semestre fui à Porto Alegre e ao litoral gaúcho. Na sequência pro Mato Grosso e pra Bacia de Campos. Depois emendei uma série sobre manejo sustentável para o Canal Futura e a primeira parte das filmagens do meu doc Galáxias. Estes dois trabalhos me levaram aos estados do Pará, Amazonas, Rondônia, Pernambuco, Minas, São Paulo e DF. Eu ainda morava no Rio de Janeiro.

A série do futura era pra provar que é possível explorar madeira de forma legal e sustentável. E mostrar histórias da sociedade civil, leia-se: histórias de comunidades, povoados ou associações de trabalhadores de gente normal, pobres em sua imensa maioria, que tiveram que se organizar pra não se ferrar completamente. Eu nunca fui exatamente um ambientalista. E em 2012, a animosidade contra o governo petista já estava rolando em doses cada vez menos homeopáticas. Então, sempre que via algum ambientalista falando mal do governo do Lulão das massas ou da Dilma, eu imediatamente, mesmo que concordando com a crítica, já ficava com o pé atrás. Com alguns pés atrás, lá estava eu, em Belém, em Barcarena, em Santarém, filmando toras de madeira, serrarias, látex pendurados, galões de açaí, carnaúbas e babaçus. Não farei o trocadilho.





De Santarém peguei um vôo com sei lá quantas escalas pela região norte até chegar em Cacoal, Rondônia. Ia encontrar um cacique chamado Almir Suruí, do qual sabia pouco mais do que uma lauda. Almir nasceu 5 anos após seu povo ter feito o primeiro contato com os brancos. Em 1969, quando aconteceu este encontro, haviam cinco mil suruís espalhados entre o Mato Grosso e Rondônia. Quando Almir nasceu eles eram apenas 250.


Paiter, que é como eles se denominam, quer dizer gente de verdade, nós mesmos. Bastaram apenas 5 anos de contato pra gente de verdade, os Paiter-Suruís serem devastados por doenças, assassinatos e cachaça. Mais tarde, Almir foi estudar em Goiânia, voltou, se tornou líder do seu povo e começou a incomodar. Com apoio da FUNAI e do Ministério do Meio-Ambiente iniciou um projeto de reflorestamento. Depois, suprema ironia, com o apoio da Apple e do Google, conseguiu que os jovens da tribo fossem treinados para usar equipamentos com gps e com estes equipamentos, eles mesmos mapearam e demarcaram com grande precisão, todo o território paiter-suruí. Almir começou a ganhar notoriedade e junto com a fama vieram as ameaças de morte. Na COP de Copenhague em 2009, ele apresentou o projeto carbono suruí que foi o primeiro projeto de captação e troca de carbono viabilizado no planeta.




Basicamente era isto que eu sabia sobre o Almir quando fui junto com a equipe, buscá-lo na sua casa em Cacoal para de lá irmos pra reserva. No trajeto de quase 1 hora, expliquei o que pretendíamos fazer e Almir praticamente não abriu a boca. Quando chegamos ele me apresentou para um jovem e disse: o que vocês precisarem, peçam pra ele. Almir foi para a varanda de uma casa, onde estavam outros velhos senhores e lá ficou, sem nos convidar para entrar. Começamos a filmar e depois do almoço percebi que minha mão direita estava completamente inchada. O jovem chamou Almir, que chamou mais dois velhos, que chamaram mais um outro homem mais velho ainda. Fui cercado por eles, que olharam minha mão, olharam mais uma vez com muita atenção e o homem mais velho me olhou e disse de forma pausada e grave: TU! HOSPITAL!
A equipe ficou por lá e eu voltei pra Cacoal. Ao mesmo tempo que me ria da cena, estava um pouco decepcionado, pois acreditava que o pajé iria me receitar alguma remediada da floresta. Cacoal parece uma cidade do interior de São Paulo perdida na mata. Paulistas, gaúchos, catarinas e paranaenses. As calçadas arrumadas, as sorveterias, tudo muito ajeitado. Cheguei no hospital público e aí a cidade ajeitada ficou igual a qualquer outra do país. Fila gigante. Fui no particular. Fila gigante e não aceitavam meu plano (naquela época eu ainda tinha plano de saúde). Me indicaram uma clínica dermatológica ali perto, uma casa que poderia estar no Brooklin Paulista decorada num jeito revista caras de ser, a recepcionista morena simpática e bonita, seu fabiano, a doutora fabiana vai atender o senhor daqui a pouco, e a doutora fabiana era uma loura também bonitona, também simpática, que me examinou com cuidado e me disse: É ALERGIA! Me receitou um antialérgico, um hidratante e mais um creme e eu acordei no dia seguinte com a mão bem menos inchada. Fomos buscar o Almir, no caminho eu falei pra ele que eu não era um escroto direitista, que não defendia madeireiro e, mais importante, que não era jornalista e que estava ali para que ele contasse a história dele e como é que ele estava conseguindo impedir que os madeireiros e a turma do agronegócio, provavelmente os maridos das mulheres que iam aplicar botox na clínica revista caras da doutora fabiana e que não se incomodavam de saber que eventualmente seus maridos davam tiros em índios, enfim, eu queria que ele contasse como conseguiu impedir que as terras da reserva fossem invadidas. Mesmo que alguns índios tivessem aceitado as ofertas dos fazendeiros. Mesmo com as ameaças de morte.

Almir ouviu tudo sem abrir a boca. Chegamos lá, ele me convidou para entrar na casa e montamos um plano para aquele dia. Voltei para Cacoal todo pintado, a equipe seguiu para outras aventuras amazônicas e eu peguei o avião pra casa. No Rio, começou uma coceira que não passava e as minhas pernas estavam todas pipocadas. Fui num dermatologista do plano, que em apenas dois minutos me examinando decretou com cara de nojo: É SARNA! Compra este remédio e esta pomada e batata, passa! Fiquei bolado mas comprei o remédio, a pomada e comecei a passar o anti sarna.
Viajei pra Recife, depois pra Tefé no meio do Amazonas e depois para Brasília, onde fui jantar com minha super amiga Andrea Fenzl, uma austríaca-macumbeira-candanga, que eu carinhosamente chamo de fraulein das gantois e no meio do jantar começou uma coceira danada e os meus braços ficaram pipocados e a Andrea me levou pro hospital e eu contei pro médico que estava vindo da Amazônia e ele disse que tinha feito residência em Tefé, e que não tinha dúvida: eu estava com uma MICOSE por causa do calor amazônico e uma baixa imunidade e me deu um remédio que em poucos dias ia me deixar ok. Praguejei, no dia seguinte quase briguei com uns malucos medievais que cruzei na W3, tentei ajuda com as artes marciais mas necas.



Aparentemente tudo desapareceu, mas de vez em quando algo voltava e eu tava começando a namorar a Miriam e tava com vergonha de dizer que estava com sarna e resolvi contar e ela olhou e disse que aquilo não tinha a menor pinta de sarna e ela me levou num hospital em São Paulo onde me pediram uns exames que eu só fui fazer no Rio porque eu viajei novamente nem lembro pra onde.
Fui num amigo dermatologista em Ipanema, ele chamou outras médicas, uma delas disse: É CARRAPATO! meu amigo dermatologista, criado com bolinho de bacalhau na Tijuca, me confessou: nem saberia reconhecer um carrapato se visse um. Os meses foram passando e um ano depois eu já tinha consultado uns 8 dermatologistas, sendo que um deles, dica de outra amiga, a Ana Kemper, um professor da UFRJ, que recomendou uma biópsia e depois de um mês decretou: É UM CÂNCER! É UM CARCINOMA!
Entre o final de 2012 e os primeiros meses de 2013 eu ainda fui ao Paraguai, ao Suriname, Moçambique, Suíça, Japão, Espanha e Portugal. Quando voltei do 25 de abril de Lisboa, Miriam me levou numa médica do Hospital AC Camargo em São Paulo. Ela mandou refazer a biópsia. Voltei uns vinte dias depois. Ela me olhou e disse: NÃO SABEMOS DIZER O QUE VOCÊ TEVE. MAS NÃO É CÂNCER. PROVAVELMENTE FOI UMA ALERGIA. Vai passar. Passou. Só a Miriam que ficou, com uma sarna para se coçar: Eu!
Almir Suruí tentou se eleger como deputado federal em 2022. Não conseguiu. Sua filha, Txai Suruí virou uma renomada ativista ambiental e dos direitos humanos.
Achei esta anotação feita em algum momento daquele ano:
Porque Leminski salva a espera em um aeroporto, num poema sobre Conrad:
Um dia desses quero ser um grande poeta Inglês do século passado
Dizer
Ó céu Ó mar Ó clã Ó destino
Lutar Na India Em 1866
E sumir num naufrágio clandestino
É isto macacada! Grandes dias para todos nós! Semana que vem tem mais. Paz, amor, vacinas, pomadas, cremes, hidratantes e antibióticos! A corda balança com a chegada de Di Moretti e da Cristina Schumacher, uma grande amiga desde que eu era criança pequena em Frederico Westphalen!

LINKS! LINKS E MAIS LINKS!
os gols da vitória do botafogo sobre o flamengo:https://www.youtube.com/watch?v=ENVPqj3OYLU
o trailer de A DIPLOMATA: https://www.youtube.com/watch?v=mXY4SH37RXc
os memes com o zé gotinha: https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/post/2023/05/ze-gotinha-vira-meme-apos-operacao-da-pf-sobre-suposta-fraude-em-cartao-de-vacinacao-de-bolsonaro.ghtml
um teaser do doc. Galáxias: https://vimeo.com/111980444
o site da prefeitura de cacoal: https://www.cacoal.ro.gov.br/
um link com a bio de almir suruí: https://portalamazonia.com/jotao-escreve/almir-surui-o-lider-indigena-mais-empreendedor-do-brasil
sobre os paiter-suruís: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Surui_Paiter
sobre doenças de pele: https://agencia.fapesp.br/descoberta-pode-contribuir-para-diagnosticar-e-tratar-doenca-de-pele-causada-por-falso-fungo/36948/
o instagram da txai: https://www.instagram.com/txaisurui/
toda poesia do leminski: pra ler, ler e reler: https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535922233/toda-poesia
conrad é outro escritor obrigatório. polonês, foi um mestre na língua inglesa. seus livros inspiraram filmes como apocalypse now, os duelistas e o agente secreto. https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/literatura-estrangeira/conrad-e-a-origem-do-mal
o trailer de apocalypse now: https://www.youtube.com/watch?v=FTjG-Aux_yQ

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