na corda bamba numa fábula de veneza + a fabulosa playlist 61

O Gueto de Veneza é o mais antigo do mundo e a palavra gueto se originou deste bairro que foi fundado em 1516, quando a Sereníssima República conseguiu sobreviver aos ataques de alemães, espanhóis, ingleses, escoceses, franceses (que nesta guerra começaram atacando e terminaram defendendo) e de mais uma penca de inimigos, todos reunidos pelo Papa Júlio II -o mesmo que sacramentou o Tratado de Tordesilhas– na Liga de Cambrai. Todos queriam botar a mão na grana que os venezianos faziam comerciando com a África e o Oriente pelas águas do Adriático e do Mediterrâneo. Quando as tropas do Sacro Império Romano Germânico chegaram pertinho, os judeus que viviam em Mestre, uma espécie de Ilha do Governador local, só que sem ser ilha, fugiram para Veneza e foram confinados no Ghetto Nuovo, no Bairro de São Jerônimo. Lá, eles podiam tocar a vida e, mais importante: pagar impostos. Os judeus não eram exatamente bem vindos, mas a grana que faziam circular sim. E os banqueiros de Mestre ganharam autorização para emprestar dinheiro com juros. De dia. Durante a noite eles não podiam sequer circular fora do gueto.

Em dezembro de 2011 fui para Veneza e não por acaso me hospedei na Casa Israelitica di Riposo, que fica no gueto judaico. No café da manhã um casal puxou conversa: Você é de onde? Brasil? Sim. Que inusitado! Temos parentes em São Paulo. Conhece a família Epstein? O único Epstein que eu ouvi falar foi o Brian. Você não é judeu?! Não. E por que está hospedado aqui? É por causa de uma história em quadrinhos, por causa do Corto Maltese. Não quis contar que também era porque minha amiga Norma achou a diária numa super promoção. Na segunda manhã em Veneza, novamente no café, outras pessoas me abordaram e as indagações se repetiram: Do Brasil? Temos parentes no Rio. E você não é judeu?! Na terceira manhã, quando perguntaram meu nome, não titubeei: Meu nome é Fabian Abramovich, meus avós fugiram da Rússia Comunista e foram primeiro pra Recife, depois pra São Paulo. É mesmo? Temos parentes por lá, conhece a família Levi? Conheço um pouco, a mesma do escritor? E assim embromei até o café acabar e eu conseguir sair pra rua, levando comigo no bolso do casaco o livro A Veneza de Corto Maltese, um guia da cidade inspirado nas histórias do personagem criado por Hugo Pratt. A mãe de Hugo Pratt era descendente de turcos e de judeus e era uma estudiosa de diversos tipos de esoterismo, com um leque que abria as cartas ciganas e as do tarô e transitava entre os segredos da cabala e das seitas heréticas. Dona Evelina era praticamente uma mãe ancestral do Alto Paraíso de Goiás. Pero autêntica.

A Veneza de Hugo Pratt-Corto Maltese acontece em lugares com nomes fabulosos e intrigantes: Pátio Secreto do Arcano, Ponte Secreta da Nostalgia, Serralho das Belas Idéias, Passagem dos Árabes. Com a memória de alguns trechos do Fábula de Veneza e do Anjo da Janela do Oriente, eu passei alguns dos dias mais inusitados e estranhos da minha vida correndo atrás destes lugares. Na Corda Bamba com a playlist 61 tá começando cheia de fábulas fabulosas, de encantarias e outros balacobacos. Saravá!

corto em veneza
a casa israelítica di riposo foto: fabiano maciel
gueto velho, novo e novíssimo
os prédios mais altos de veneza ficam no gueto

A vida de Hugo Pratt foi tão mirabolante quanto a de seu personagem principal. Ele nasceu em Rimini, como Fellini. Seu pai era fascista e durante a segunda guerra levou a família para o norte da África, onde servia na polícia colonial italiana. Foram capturados pelos ingleses, ficaram num campo de concentração até que a Cruz Vermelha conseguiu repatriar Pratt e sua mãe para Veneza. No final da guerra, ele escapou de um pelotão de fuzilamento nazista, foi intérprete dos ingleses e começou a desenhar. Nos anos 50 foi trabalhar com os Civita em Buenos Aires, depois veio pra São Paulo. No Brasil tentou seguir a pista do explorador Percy Fawcett, que sumiu na Serra do Roncador. Frequentou terreiros em Salvador, voltou pra Europa, tentou morar nos Estados Unidos, voltou pra Itália, viajou pela África, e pela Polinésia. Teve uma penca de filhos, alguns deles em Salvador, outros no Mato Grosso, na Irlanda e na Itália. Quando Corto Maltese virou um sucesso no mundo inteiro, reconheceu todos que estavam espalhados. Parece que mandou um dinheiro também.

com boca dourada (bouche doree) na bahia

Corto Maltese é o herói perfeito para quem cresceu idealista entre os anos 70 e 80. Filho de uma cigana de Malta com um marinheiro inglês, quando soube por sua mãe que não tinha a linha da sorte, pegou uma faca e riscou ele mesmo o caminho da fortuna na mão. Assim como Ken Parker, outro herói dos quadrinhos italianos, o mundo em que ele vive está de pernas pro ar e prestes a ruir. Caçadores de fortuna não cabem na nova ordem. Ele ajuda cangaceiros no Brasil, trabalha para organizações secretas chinesas, ataca navios de qualquer bandeira no Caribe e nos mares do sul, luta ao lado de irlandeses contra os ingleses, encontra Jack London na guerra dos russos com os japoneses, vaga pelo deserto com beduínos na Abissínia, tenta roubar o ouro do czar na Sibéria e consegue transitar entre todos estes mundos sem necessariamente tomar partido de alguma causa. É quase simples: Corto só não apoia cretinos. Seu melhor amigo, mesmo que não goste de admitir isto, é um russo psicopata que é a cara do Rasputin, aliás, ele se chama Rasputin. Os personagens de Pratt nunca são totalmente bons. Ou maus.

o homem do sertão, outras histórias de pratt no brasil

Tirando a aventura, os homens extraordinários e as mulheres espetaculares que ele encontra nos lugares mais exóticos, o que fascina nas histórias é que Corto é um cético, um racionalista pragmático que sempre se deixa levar por todos os mistérios sobrenaturais que atravessam o seu caminho. Ele está sempre sonhando acordado e nem sempre sabemos quando é sonho, quando é realidade. Ele sempre está entre os vivos e os mortos, entre os crentes e os infiéis, os hereges e os iniciados. Na praia de Itapuã ele é amigo e hóspede de Boca Dourada, uma entidade do Candomblé da Bahia, que aparece em outros momentos, mandando mensagens e sinais quando Corto está em lugares distantes como Xangai. Na Sibéria ele vai encontrar xamãs, no Peru vai cruzar com índios que o levarão para o mundo desconhecido de Mu, na Etiópia um velho diabo vai aparecer para ele, em Veneza ele irá recorrer ao velho Melchisedech no gueto, mas também aos irmãos Serafim e Marcos, um franciscano, o outro, jesuíta. Mais uma vez, Corto lida com qualquer fé sem seguir nenhuma, convive com qualquer religioso, desde que este não seja um cretino.

em veneza entre franciscanos e jesuítas
rimbaud no deserto

Os tempos estão estranhos, diz o líder da casa Hermes, uma das lojas maçônicas de Veneza. A frase serve pros dias de hoje. Estou lendo o livro do Luiz Antonio Simas, Umbandas, uma história do Brasil. Simas presta um grande favor ao povo macumbeiro deste país. Ele não hierarquiza absolutamente nada. Ele não está preocupado em provar a ancestralidade de um grupo sobre outro, ou em discutir a pureza e a originalidade de algum rito ou terreiro. Candomblé, Umbanda, Tambor de Mina, de Crioula, o catimbó e as famílias encantadas, todas se formaram como resistência, todas criaram vida enfrentando a morte e a destruição.

Simas fala de como as macumbas interagem entre o sagrado e o profano, como não estabelecem barreiras entre os mundos dos vivos e dos mortos e de como são, acreditem, ecológicas dentro de um ecossistema encantado.

Os tempos estão estranhos. No mundo dos vivos, tem quem passe pano em genocida. No mundo dos mortos vivos, tem quem ganhe salário de jornalista pra fazer isto.

Hugo Pratt jamais tomaria uns copos com Bibi. Corto o jogaria no mar.

É isto aí. no céu, na terra, no mar. No real e no sobrenatural, na corda bamba.

Na Corda Bamba precisa muito de sua ajuda: assine nos botões vermelhos lá embaixo, ou ajude com pix de qualquer valor, eu disse qualquer valor mesmo na chave fabpmaciel@gmail.com

Uma máxima: quem for pra paulista no domingo é golpista.

e uma mínima pra encerrar:

mamãe já dizia, nunca seja um merval pereira na vida.

mamãe não disse mas todo mundo sabe: nunca seja um ex-gabeira.

a foto de capa desta edição eu tirei em veneza em 2011.

O QUE VAI ROLAR NA PLAYLIST DE HOJE:

Na Corda Bamba playlist 61 começa botando pra quebrar: Jeff Beck destrói, detona, arrebenta e não sei quantos mais adjetivos são necessários pra descrever a guitarra dele nesta versão para Goodbye Pork Pie Hat, de Charles Mingus. Com 13 anos eu queria ser Jeff Beck.

ligado e azulado

Quem mandou pra mim foi o ninjalino Reynaldo Zangrandi, ouvinte regular e leitor irregular da corda bamba. “Ouve aí! Segundo o Antônio (filho dele) é tiro certeiro com as meninas do São Vicente”. Com canto de sereia tão explícito, não pude deixar de ouvir.

Minha gatinha comunista eu preciso te dizer, que eu acho que o vermelho fica muito bem em você…espero que você abra uma exceção, eu quero a propriedade privada do teu coração…

Que versos espetaculares! Um primor de poesia vermeleja engajada, hit pareide da Ursal e do Comunistão da PUC. Não é ironia. Não tive alternativa a não ser colocar os rockenroleiros da banda Vitroles, de beagá logo depois do mr.jeff beck.

É uma escolha que se impôe, que se aproxima de uma das muitas mínimas que adoto desde que nasci num berço de classe média em porto alegre: “As reacinhas que me perdoem, mas esquerdismo é fundamental.

a gatinha comunista fez uma revolução no meu coração

No final de tudo, é tudo sempre uma questão de luta de classes. Então subimos pra Pernambuco, onde Dona Selma do Coco canta:

Ô moreninha do dente de ouro
Parece um tesouro a boquinha dela
Se eu pudesse e tivesse dinheiro
Eu ia à Barreiro e casava com ela

Daqui em diante é Na Corda Bamba em ritmo de aventura. Nocaute com James Brown. Cruzado de esquerda com Jimmi “Bow” Horne, lembrança do psicotrópico sapolino Zeca Azevedo, e se você tá achando que só porque é domingo de manhã vai ser tudo suavidade maciota, nananina. Avante com jab direto de Fat Boy Slim pra acordar quem ainda tá lesco lesco debaixo do lençol. Levanta chinelo! Se liga que tem Jeff Beck tocando e destruindo tudo mais uma vez. Vale lembrar que este é o disco de Blue Wind, que o Pepeu gostava de tocar e também o disco que tem 4 músicas compostas pelo baterista, pianista e cantor, NaradaMichael Walden. O cara é tão cascudo que Quincy Jones mandou na lata: vire produtor. Foi o que ele fez.

jimmy bow horne castigando o piso

Se tem uma banda que já nasceu botando pra quebrar, esta banda é o Earth,Wind and Fire, ouçam o que os caboclos já faziam no disco de estreia, de 1971. Não dá pra sair da pista, é lá e cá: André Abujamra não brinca em serviço na explosiva e vibrante Origem. Quem também nunca deu mole foi mr. Paul Weller, que quando resolveu largar o The Jam, juntou os instrumentos com Mick Talbot e fez o super pop e elegante The Style Councyl, cheio de músicas que sacudiam o esqueleto e metiam o pau na dama de ferro!

earth wind and fire arrebentando no disco de estreia

Gabriel Muzak corre apressado na esquina da Presidente Vargas com Rio Branco, DJ Dolores e Macalé, juntos, saidebaisaide na hipnótica e incrível Mundanças. Na sequência, Los Espiritus, banda argentina com levada maconhon de obelisco convocando os espiritus pra ajudar a suportar o milei sem alça de couro em dia de chuva.

Mais uma das dezenas, centenas, milhares de músicas, bandas e artistas que conheci ouvindo o Ronca Ronca do Maurício Valladares: Kevin Ayers que o próprio texto do spotify classifica como um dos maiores enigmas da música britânica, um cara com canções e letras geniais que não se leva muito a sério. Não se levar muito a sério ajuda. E atrapalha também.

bossa nômade correndo da confusão na presidente vargas

Ringo Starr e como é bela It Don’t come Easy!

Rita Lee e como é esperta a moça que não acredita em bruxas, mas que sabe que elas estão por aí.

E como é foda a Elza Soares, que sempre ficou do lado certo, aqui, junto com Itamar Assumpção, que a cada dia que passa fica mais importante na minha vida, na história da nossa música, nas letras que ainda nos falam do presente e do futuro.

Negro Léo, direto do Maranhão com sua póspóspóspsicodelia. Grand Funk Railroad com seu hardrockbluesraiz. Dillo, de Brasília com versos um tanto tortos, um tanto confusos, mas lanço aqui e se alguém quiser teorizar…De novo em Recife com Sonika e Mundo Livre. E depois Rodrigo Damati um cara que diz que sabe o caminho de casa, mas nasceu em Porto Alegre, morou em Salvador, depois em São Paulo, Belo Horizonte…

Em Buenos Aires (de nuevo) e Madri com uma canção fofilete executado por Calequi y las Panteras, com participação especial de Kevin Johansen. Calequi segue com as panteras em Harvest Moon, e enquanto o bardo Neil Young não liberar, música dele por aqui, só cover.

calequi y las panteras te invitan para una gozadera party, tuepas?

Jongo Trio no seu provável maior sucesso popular: Cavaleiro de Aruanda. Nos anos 70, quando foi lançada, tocava nas rádios do povão e da bestage também. Na tv kichute e na tv topper.

Eu gosto mesmo é da Banda Pluma. As músicas deles tem uma…leveza. Ops! Verdade, o som deles é muito classe, é tranquilidade, é serenidade mas não é incenso de jasmin de yoga no jóquei clube, é música pra ouvir no rádio do carro, no táxi no meio da tarde de uma terça-feira, quando nada engarrafou e a gente ainda consegue acreditar na humanidade…Pedro Fonte eu acho que também dá pra ouvir no táxi. Talvez um pouco mais tarde. Silver Convention tá nesta de banda de música de terça no meio da tarde. E também é banda de pista cheia nos embalos de sábado a noite. Mas se o clima for de um cantinho um dormidão, vá com a turma da Anatólia, manja a Anatólia? Ásia Menor, Turquia, na corda nota 10 em geografia, lá onde canta a turma do Derya Yildirim e o Grupo Simsek, no original tem uma cedilha no S e eu nem sei como coloca cedilha no s, mas com ou sem cedilha, o som é relax tapete voador e certamente não toca nas novelas turcas que o TNT exibe, novelas cheia de moças lindas e galãs que poderiam estar na festa do peão boiadeiro…triste e vasto vasto mundo…

tocou muito no rádio, mas quase ninguém ouviu o disco todo.

Erasmo Carlos está sozinho, sentado na beira do caminho.

Os Índios (argentina rides again) de Santa Fé, estão dizendo pro Erasmo que já passou, que ele pode subir no carango. E ouvir Andrea Echeverry cantar com Telebit. Ele também pode ligar o rádio do carro e ouvir Sly & The Family Stone no bule bulinho evribódi é estrelinha. E ir pro baile, pra encontrar a Xênia França e esperar ela tirar ele pra dançar, pode ser agarradinho ao som do Vinícius Cantuária ou mais embaladinho com Ubiratan Marques e a Orquestra Afrosinfônica.

tremendão aboletado na beira do caminho

Frank Zappa chegou para quebrar paradigmas e jogar todos os coachs do alto do Everest. Os coachs descem, os músicos sobem: Bola Sete, Passo Torto, Peter Tosh, Os Mulheres Negras, Negro Leo + uma vez, indo aos brics, The Zodiac e The United States of America.

A parada segue fervendo na curva dos últimos 100 metros: Black Pantera, Breno Mello com Marpessa Dawn (Orfeu do Carnaval), a terra tremendo com Nação do Maracatu Porto Rico, a Charanga do França e não se faz carnaval com geladeira vazia, Style Council no bis e perto do grid, Terry Callier pra convocar os seres supremos e os Vitroles pra fechar como um guri esta bagaça!

LINKS! LINKS! E MAIS LINKS!

fábula de veneza:

o guia da veneza de hugo pratt e de corto maltese saiu em português:

https://www.wook.pt/livro/veneza-percursos-com-corto-maltese/16410027

a intrépida e alucinada vida de hugo pratt em um artigo de primeiríssima de ronaldo bressane:

imagens do campo de prisioneiros onde hugo pratt ficou durante a guerra: https://blogs.icrc.org/cross-files/hugo-pratt-and-icrc-in-ethiopia/

os franceses, alucinados por pratt, transformaram corto em série animada:

https://mubi.com/pt/br/films/corto-maltese-the-gilded-house-of-samarkand

goodbye porky pie hat com seu autor, charles mingus:

uma matéria sobre o anti-dama-de-ferro no pop inglês:

https://www.hollywoodreporter.com/news/music-news/margaret-thatcher-rise-fall-great-434895

ringo starr!

pluma e uma canção que já rolou por aqui:

black pantera passa fogo nos racistas:

E A PLAYLIST!