na corda bamba e a insuportável leveza do ser.

“Sempre trago comigo uma garrafa, no caso de ver uma cobra —que também sempre trago comigo” W.C.Fields

Tenho uma inveja danada das pessoas 24 horas por dia positive vibrations. Jesus te ama! Eu também te amo! O cabeludo apareceu sorrindo para entregar um folheto dos Meninos de Deus, uma seita hippie picareta dos anos 70. Minha sábia tia Dudu, mandou na lata: Eu não te amo! Achei aquilo muito lindo. Era um moleque, um guri ainda, mas é de pequenino que se torce o pepino diz o ditado. Hoje, burro velho, só consigo ser alegre poucas horas por dia e em muitos dias nem isto. Aqui vive um ser ranzinza, levemente atormentado, que tenta de alguma maneira seguir com alguma fé na humanidade, mas que vive quase sempre puto da vida com praticamente tudo o que acontece ao seu redor. Mesmo que de longe. Ainda é ao meu redor. O cardápio é amplo e variado: a seleção brasileira, o atual time do Grêmio, o Conselho de Medicina que virou uma sucursal do cramulhão, o presidente do Banco Central, os economistas de aluguel do PIG, os jornalistas de aluguel do PIG, os cantores sertanejos, etc, etc. Como não ando com vontade de resmungar sobre nenhum destes assuntos, fico sem assunto. Tenho que inventar assunto. Acho que já contei aqui sobre a estratégia do Buñuel quando lhe faltavam ideias para as cenas de seus filmes. Pois bem, ele transformava seus sonhos em cenas. E assim, muito do que enloqueceu e confundiu o público, do que seduziu a crítica e do que foi considerado como grandes sacadas geniais – e elas eram geniais mesmo- foram sonhos que o seu Luís resolveu colocar nos seus filmes. Como não ando sonhando muito, e como nunca vou chegar nem perto do cão andaluz, vou falar de bares. Bares sempre rendem alguma coisa. No mínimo umas bolas foras e no máximo, alguns vexames que o tempo, um longo tempo na verdade, trata de apagar. Como não foram poucos os bares, hoje escrevo sobre os primeiros que frequentei, em Porto Alegre. Semana que vem, Rio e depois São Paulo. Pra minha sorte, foram muitos bares. Na Corda Bamba edição 110, muito bem acompanhada da fodástica playlist 79, está na rede. Encha o copo, leia, ouça e saúde!

porta do ocidente, 2010 foto: fabiano maciel

Comecei a frequentar o Alaska no começo dos anos 80. O bar era pequeno, tinha aquelas poltronas com divisórias altas, como nos diners americanos. Servia comida alemã fast food: salsichas, salada de batata, chucrute. E chopp. E batidas de maracujá. E batidas de coco. O lance era discutir a revolução, falar mal da convergência socialista e do MR-8 (eu era da Libelu) e se embebedar de batidinhas, fumar um, vomitar e depois, se ainda houvesse grana, comer um xis coração e voltar caminhando da esquina da Sarmento com Oswaldo até a Duque de Caxias, na quadra entre a Bento e a João Manoel. O Alaska tinha um público cativo em grande parte pela generosidade e sabedoria de seu único garçom, Isake Plents de Oliveira, que além de ultra mega blaster eficiente, tinha uma paciência de Jó com todos os clientes, fossem eles velhos comunistas, velhos professores da URGS, quase todos comunistas também, e jovens gauches e destrambelhados como eu. Era carinhoso com todos sem jamais ser vaselina. Quando o Alaska fechou foi uma comoção que deixou velhos comunistas e jovens gauches sem lar. E sem bar.

tidi, o dono do luanda. foto: adalmir santos, rbs

Eu também frequentava o Marcelina, o Van Gogh, um boteco bem pequeno que não lembro o nome na Independência, o 433, o Escaler, o Bar do João, o Lola, o Pelotense, o Odeon, o Bar do Beto, o Lugar Comum e dependendo do avançado da hora e do bairro onde se estava, o lance era tomar uma sopa no Luanda ou na Tia Dulce pra curar a bebedeira. Sobre o Tia Dulce, eu abro um espaço aqui pra reproduzir imediatamente, uma história absolutamente espetacular, contada por um dos nossos correspondentes na capital da bagualândia, o quase perfeito (ele é meio mr-8, meio rádio, meio televisão) Márcio Pinheiro. Esta história ele publicou na sua página de fb em 2021.

Ontem o corpo de Josephine Baker (1906-1975) foi transferido para o Pantheon de Paris. Ela foi a sexta mulher a receber esta homenagem, e a única mulher negra. Há exatos 50 anos, ela esteve em Porto Alegre, época ainda em que quase ao lado do Teatro Leopoldina – onde ela se apresentou – havia o Tia Dulce. Era um restaurante, localizado no térreo de um edifício e famoso por uma inesquecível sopa de cebola. A Tia que dava o nome ao estabelecimento era casada com um alemão, Henry Walter Cassel, que contava ter lutado ao lado dos americanos na II Guerra. Tio Dulce, como foi apelidado, também adorava contar – sentado numa mesa de canto do restaurante – que havia sido amigo de Josephine, inclusive ajudando-a durante as batalhas. Ninguém acreditava. Em 1971, quando se apresentou na cidade, Josephine foi convidada por um grupo para ir ao Tia Dulce. Era a chance de demolir com a fantasia de Tio Dulce. Chegando ao local, Josephine olha para o canto e diz: “Henry Cassel!!!!!”. Ele se levanta, os dois se abraçam e começam a chorar convulsivamente. Era tudo verdade!

josephine baker em porto alegre, 1971 reprodução site de gasparotto

Josephine Baker foi uma mulher extraordinária e ao longo de sua vida visitou diversas vezes o Brasil, numa delas, em 1929, veio no mesmo navio que trazia um tal de Le Corbusier e os dois entabularam um tête-à-tête bordejante pelo Rio de Janeiro. Mas isto é outra história.

anúncio de show de josephine baker em recife, 1952

Se não havia mais o Alaska, tinha o Ocidente. Acho que nunca encontrei nada parecido com o Ocidente em nenhum outro lugar do planeta. No almoço era um monótono restaurante de comida natural. De noite era alucinação geral, palco para a apresentação de algum mágico de quinta categoria, de uma performance, de algum show erótico, do lançamento de um livro, de um show dos Replicantes ou do Urubu Rei, que era a banda do gordo Miranda. O Ocidente não tinha o Isaque mas tinha o Afonso, um dos sócios, que ficava no balcão, sempre com um olho na missa e outro no padre. E se hoje Porto Alegre é uma cidade dominada por um bando de cuzetas e de paus no cus reacionários, truco que estes arrombados não frequentavam o Ocidente nos anos 80-90. Se tivessem passado por lá, certamente não estariam hoje batendo periquita pro prefeito Véio Véio, o homem que não enche a cara de cachaça, mas que sabe como poucos, deixar uma cidade inteira na maior água.

julio reny no ocidente em 1989. foto de fernanda chemale

Sin perder la ternura.

Fui.

Ainda estamos de férias.

A playlist tá lá embaixo.

E depois da playlist tem dois botões vermelhos. Cliquem neles e me ajudem a seguir vagando pelos bares da vida. E se quiserem me pagar um chopp agora, vocês podem fazer um pix para fabpmaciel@gmail.com

Saravá!

A imagem da capa desta edição mostra a obra Senhor e Madame, que Joan Miró fez em 1969. Ela está numa bacanuda exposição de Miró e de Calder que está acontecendo no Instituto Tomie Ohtake em SP.

links! links! e mais links!

uma matéria sobre isake, mítico garçom do alaska em porto alegre:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/almanaque/noticia/2021/01/o-garcom-que-se-tornou-uma-lenda-na-esquina-maldita-ckk8o7q3t001h017w4e3d1y93.html

Achei este texto, de Paulo Palombo, na página de uma senhora chamada Mãe Negra de Bilaia, sobre o Luanda, um bar tão surreal e improvável, que durante um tempo eu pensei que a existência dele era um delírio da minha memória. A história do Luanda também é bacanuda e aqui vão alguns trechos:

O bar que antes era uma Flora de artigos de Umbanda, foi adquirido por João Altair no final dos anos sessenta. Foi ele quem deu o nome de Luanda Bar em homenagem ao continente africano. A decoração foi feita com máscaras e pinturas baseadas em guerreiros. João Altair era artista plástico e estudioso da cultura e religiosidade negra. Depois o Luanda teve dois donos que permaneceram pouco tempo. Após, o bar fechou um por um período e finalmente quando chegou às mãos de Tidi ele imprimiu sua marca e seu jeito. O Bar abria somente após às 21:00 horas e só encerrava suas atividades depois das oito horas da manhã. A frequência era muito heterogênea. O certo é que a “saidera” era lá. Num lugar minúsculo, seu dono conseguiu dispor mesas, cadeiras, garrafas e milagrosamente uma cozinha ou melhor uma mini-cozinha e era de lá que saia o famoso sopão do Tidi. Alguns de seus frequentadores, Lupicínio Rodrigues, Zé Kéti, Jamelão, Paulo Santana, o então Deputado Floriceno Paixão, Glênio Peres, e muitos outros, além jornalistas, políticos, somado a esse contingente, prostitutas, marginais, homossexuais, motoristas de táxis, etc. Mas a fama toda era o sopão, o sopão do Tidi, com o “ olha a sopa quente” que se repetia madrugada a dentro, se preparando para sair de trás do balcão, anunciado no bar sempre lotado. E era coisa simples, água, galinha e massa, “eu renovava ela constantemente” dizia ele, “além disso uma pimentinha muito forte” preparada numa garrafa. Era muita energia, esse era o motivo que diziam que a sopa levantava até defunto. Tidi atendia seus clientes sempre de gravata, avental e boné branco. O Luanda também nunca fechava, atendia de segunda a segunda, inclusive Natal e Final de Ano.

josephine baker no rio: https://museudeartedorio.org.br/programacao/josephine-baker-e-le-corbusier-no-rio-um-caso-transatlantico-2/

josephine baker na bbc: https://www.bbc.com/portuguese/geral-59453094

galeria dos bebuns ilustres: w.c. fields https://pt.wikipedia.org/wiki/W._C._Fields

os meninos de deus no globo de ouro em 1975. salve tia dudu que me deixou longe desta turma!

música boa pra compensar: les rita mitsouko com sparks

na playlist # 79:

blood, sweat & tears, les rita mitsouko & sparks, joan armatrading, todd terje, kool & the gang, manu chao, autoramas & b negão, elisa de sena, elizeth cardoso, totonho e os cabra, chicano batman, parliament, fatboy slim, the mummies, creepy nuts, carpenters, mari romano, elvis costello, elis regina, eliana pittman, serge gainsbourg, joan chamorro & rita payés, toots & the maytals, the temptations, ortinho, long john baldry, the white stripes, tim maia, nathaniel rateliff & the night sweat, frank zappa, nei lisboa, franz ferdinand, the b-52’s, léa freire, maria bethânia, kassa overall, freak power, robson jorge e lincoln olivetti, terrence parker, bootsy collins, marcos valle

acreditem. é bacana!
maravilha descoberta no sempre implacável ronca ronca de mr. maurício valladares

e a playlist!: