“Sempre teremos Paris” é a frase do Bogart pra Ingrid Bergman em Casablanca que continua servindo pra muita gente: pro turista embasbacado, pra madame deslumbrada, pro refugiado político, pro corrupto foragido, pro imigrante, pro estudante e pro casal sonhador. Serve pra quase terminar um filme, serve pro Woody Allen e pra Emily que não serve mais nem pro escapismo. E serve pra começar esta edição 121 de Na Corda Bamba. Serve porque nesta semana vi um filme francês despretensioso, mas com uma trama totalmente sincronizada com o nosso deprimente momento histórico. Onde mais a não ser na França, é minimamente verossímil existir um prefeito socialista (em Lyon) não envolvido em esquemas de corrupção, em crise existencial por se sentir incapaz de ter novas e boas ideias? Até aí, neves. O lance é que para resolver o problema, ele convoca os serviços de uma filósofa, que é incumbida da missão única e exclusiva de pensar! Você consegue imaginar os atuais prefeitos de São Paulo, Porto Alegre ou Belo Horizonte, convocando uma filósofa pra dar um sacode na gestão? -Olha, tô te chamando porque tô precisando de 10% de Maquiavel, 30% de, de …como é mesmo o nome daquele cara? Heidelbergue…Hildelbrander…Aqui seria ficção científica ou comédia bole bole. Pois o filme, de 2018, se chama ALICE E O PREFEITO e eu me dei o trabalho de transcrever alguns diálogos:
P:-Você sabe o que é uma ideia?
A-Não exatamente. Os filósofos deram várias definições.
P-Sim. A filosofia…Isabelle me aconselhou procurar um psicanalista. Ela quis até me apresentar a um coach, mas percebi logo a fraude, a vulgaridade, sintoma da nossa época. Pensei em resolver meu problema mais profundamente, com a ajuda da tradição filosófica, e não com essas terapias da moda.
A-A filosofia é ótima, mas não é terapia.
P-Acho que não preciso de terapia.
O prefeito está em crise e não faz a menor ideia de como lidar com um mundo onde o projeto de bem-estar social e desenvolvimento foi literalmente pro brejo:
P-Eu acredito em ideias, em progresso. Acredito no crescimento infinito, na infinitude da engenhosidade humana. Acredito nas virtudes das lutas sociais, tenho a convicção de que a humanidade sempre buscará mais direitos, sempre mais educação para todos, sempre mais diálogo, mais cultura, então devolvo a pergunta a você: Como faremos isso? Como, um homem de esquerda como eu, encara a direita e uma parte cada vez maior da esquerda dizendo em uníssono que apenas a gestão da escassez é possível.
A-Não sente que encara um muro instransponível há trinta anos?
O muro intransponível da esquerda hoje é não se bastar como esquerda. Não basta enfrentar a burguesia, o mercado, as big-techs, o que for. Temos que lutar internamente e esta luta nunca se encerra numa discussão democrática por novas proposições.
P-Tem algo que não entendi bem. O conceito de “descendência comum”.
A-É George Orwell.
P-Não entendi bem.
A-Para Orwell, o papel de um intelectual na esquerda é não perder o contato com o povo.
P-Sim, mas isto é óbvio. É uma exigência em que concordo com ele.
-O inimigo para Orwell é o intelectual de esquerda cujas ideias parecem piada para o povo. Para dar vida ao ideal socialista, existem valores, há abordagens tradicionais e concretas com o mundo com as quais a esquerda não pode romper, para não se apartar do povo e da vida. Se a esquerda se separa disso, ela será apenas uma estratégia cínica de tomada de poder político.
-É um pouco confuso, não? O que diz Orwell sobre o progresso?
-Como assim?
-Como assim “como assim”? O progresso.
-O progresso só faz sentido em uma trajetória que vai do ponto A ao B. O progresso é se aproximar do ponto B. Há uma trajetória precisa? Os socialistas têm uma trajetória precisa? Para os ricos, pagar menos impostos é progresso.
PUTA QUE O PARIU! Vamos trazer a parada para o nosso contexto: Não preciso nem entrar no fato de termos um coach disputando com chances de vencer a prefeitura da cidade mais “progressista” da América Latina e não preciso lembrar que empresários como os donos dos Queijos Tirolez apoiam financeiramente este tipo de candidato. Fiquei pensando aqui no dilema do Orwell, de como a esquerda deve agir, e do papel do intelectual de esquerda nestes tempos bicudos. Eu não entendo lhufas de filosofia, mas sei que sempre que a esquerda resolveu brincar de centro, sempre que esquerda se negou a ser ESQUERDA, a direita e a extrema direita venceram.
Historicamente, a direita nunca fez nada de relevante, a não ser promover a desigualdade. E o único centro que presta é o comunitário. Talvez um centro espírita, e olhe lá…
E aí eu vi outro filme, O ÚLTIMO PUB, do Ken Loach. O filme é quase um inventário das perdas e derrotas da classe operária inglesa nos últimos intransponíveis 30 anos, ou seja, desde que a era Thatcher começou: perderam os salários, perderam o emprego, a força do sindicato, o apoio do estado, o valor de suas casas…As cidades industriais ficaram decadentes e foi para estas cidades que o governo inglês enviou os imigrantes, tão ou mais desamparados que os próprios moradores. Ou seja, um VDM escancarado e começa o conflito dos desesperados. O último pub talvez seja a despedida de Ken Loach. O filme incomoda. Não tem refresco.
Ken Loach sabe que não existe saída à não ser pela esquerda.
E quando a semana tava indo pro brejo, vi um documentário cuja proposta eu jamais tive coragem de fazer: um documentário que não explica nada. Que não entrevista o seu personagem principal em nenhum momento. Que sequer identifica os parentes do personagem. E a escolha do diretor não poderia ter sido mais acertada. Angelo Defanti acompanhou a rotina de Luis Fernando Veríssimo, pouco antes dele completar 80 anos. Esta opção por só registrar, por não indagar, acabou resultando num belo perfil do Veríssimo. Que sempre foi econômico com as palavras. Economia, como sinônimo de precisão, vejam bem, jamais de escassez. Até porque, Veríssimo, sempre foi de esquerda. Nos anos 2000 fiz junto com meu chapa Jeb Blount um curta chamado Pracinha, inspirado numa crônica dele. Enviei o roteiro. Ele respondeu: Ficou bom. Boa sorte. Filme pronto, mandei uma cópia. Ele respondeu: Ficou bom. Me dei por satisfeito.
Portanto macacada, se você não tem cérebro de minhoca e não é dono de banco ou laticínio, ou jornalista de economia em algum grande jornal brasileiro, você não tem motivo nenhum pra votar em qualquer candidato alinhado com a direita e com o bolsonarismo. Dia seis, não pise no tomate e vote nos candidatos da esquerda em todo o país. E, seja com a mão esquerda ou com a mão direita, assine Na Corda Bamba nos botões vermelhos lá debaixo, ou faça um pix de qualquer valor para a chave fabpmaciel@gmail.com
Na Corda Bamba 120 chega junto com a playlist 90, cheia de tric-trics abrindo e fechando com o ótimo disco novo do pernambucano Zé Manuel. A versão de Malaika, gravado com Luedji Luna ficou linda demais. Semana que vem coloco aqui a da Miriam Makeba com Harry Belafonte. Também tem Itamar Assumpção e mais um monte de coisa bacana feita por gente da pesada: Edu Lobo, Claudette Soares, Ètienne Daho, St.Vincent, Oswaldinho da Cuíca, Lurdez da Luz BNegão, Leon Ware, Vitor Ramil, Paul Weller, Richard Hell, Stereolab e muito mais!
E fica um obrigado mesmo pra Osmar Milito, que partiu e fez muita música boa enquanto esteve por aqui.
Saravá
A foto da capa é uma gravura chinesa mostrando o rosto do grande filósofo alemão Karl Marx.
na playlist # 90:


zé manoel e luedji luna malaika # letta mbulu pula yetla # claudette soares canoeiro # dar disku leil # fagner natureza noturna # john cale & ètienne daho i’ll be your mirror # # mister rebound pay for yourself# st.vincent hombre roto # fumaça preta la trampa # ètienne daho le baiser du destin # edu lobo lero-lero # oswaldinho da cuíca partido na cozinha # mc lyte thank you # lurdez da luz e bnegão terra livre # dow raiz sai da bota # leon ware french waltz # verônica ferriani cochicho no silêncio # vitor ramil amar você # paul weller change what you can # richard hell you gotta lose # stereolab free witch and no bra queen # maston souvenir # suzanne ciani golden apples of the sun # pluma quando eu tô perto # itamar assumpção se eu fiz tudo # matata return to you # dolores duran a banca do destino # osmar milito morre o burro fica o homem # jeff beck ice cream cakes #mose allison the seventh son # sérgio ricardo zelão # astrud gilberto baião # joão gomes laçou vaqueiro # os ipanemas treze, trinta e nove # madness sweetest girl # rael e céu passiflora # the go! team a bee without its sting # stevie wonder never in my sun # primal scream ready to go home # jalen ngonda anyone in love # can future days # stereolab metronomic underground # el cuarteto de nos yendo a la casa de damián # raul de souza nanã # key & cleary turn me on # buffalo springfield down down down # duffy warwick avenue # coleman hawkins & ben webster rosita # rotary connection the burning of the midnight lamp # os tincoãs cequecê # zé manoel e gabriela riley golden






LINKS! LINKS! E MAIS LINKS!
sempre teremos paris:
alice e o prefeito:
um ótimo texto do zanin sobre alice e o prefeito:
o trailer de o último pub:
uma ótima entrevista com ken loach:
o trailer de Veríssimo:
pracinha, curta que fiz inspirado numa crônica do veríssimo:
e a playlist # 90:

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