Tenho poucos leitores e entre estes poucos, alguns abnegados, como o Lucio Agra, um petropolitano que virou tijucano, depois paulistano, soteropolitano e finalmente um homem do recôncavo baiano. Depois de ler a última corda ele me escreveu. Começou com gentilezas sobre a foto da capa: É meio chinelão dizer que parece Rubem Valentim, mas é sempre um objeto curioso. Inspirado pelo Nada Supera a Vida Real, ele me contou de uma bagunça extratosférica (de extrato mesmo, não o de tomate do jotalhão, mas do saldo do bestalhão), de um valor que saiu da conta para aplicação sem que ele tenha pedido e aí ele ligou pro banco e ninguém sabia lhufas e era noite de sexta e a ouvidoria já estava com os ouvidos no travesseiro, quem sifódi na sexta depois do expediente só resolve na segunda, salvo roubo, extorsão, sequestro e bafo quente na nuca… e o gerente também não responde e até o Agra descobrir que ele podia resgatar o baú da felicidade, ele já tinha entrado em modo alfa de paranóia e mistificação, porque já não lembrava mais se tinha aplicado no fundo ou se tinha levado no fundo e o fantasma do alzheimer batendo forte no forévis como a letra daquele samba que a gente nunca consegue lembrar e só abre a boca na roda pra fingir que tá cantando junto.

Dona Cármina, minha mãe está com alzheimer há algum tempo. A memória recente foi pro brejo e qualquer charla com ela significa que a mesma frase será feita, refeita e rarefeita algumas vezes e isto não me incomoda mais – no começo me perturbava muito- hoje repito e repito pacientemente e sigo em conversas que, para minha sorte, são sempre animadas.

Mas volto pro medo do meu amigo Lucio e de sua perplexidade com a chinelagem do mundo real oficial: É foda cara! A gente tá constantemente, e você tentou aludir, mas eu sei que você não chegou à tempo, ao absurdo dos absurdos que é esta licença ambiental que nunca passou durante todo o governo b e agora passa nas barbas do próprio governo…E eu estou vivendo vários absurdos cotidianamente. Acho que a gente está numa época cosmológica de exaltação do absurdo. Vai ver é porque eu andei falando de Qorpo Santo na aula passada, sei lá…Estamos num loop absurdista.

Qorpo Santo foi um dos meus heróis de adolescência. Em 2016 Geraldo Alagoinha me mostrou o que restava do hospício onde ele ficou internado na Urca, no Rio. Lucio novamente: Esse assunto de memória nunca me motivou muito, até que em 1994, começando meu doutorado lá na Comunicação e Semiótica, eu fui ter aula com a Jerusa Pires Ferreira, uma baiana de Feira de Santana que viria a se tornar uma grande amiga e de quem sempre eu tenho muita saudade. E o assunto memória começou a entrar em cena. Pra você ter uma ideia da sofisticação do curso, a gente estudou a obra de uma mulher chamada Frances Yates, que fez uma espécie de história da memória. E com o teatro de Giulio Camillo, que na transição da Idade Média pro Renascimento criou o Teatro da Memória. E isso gerou depois um livro fantástico da Jerusa, Armadilhas da Memória. (Pra quem não leu, ou pra quem leu mas já esqueceu, na corda passada chamei na chincha o xexelento filme institucional Todos Nós Atados do governador do RS, que começa com uma citação do Waly Salomão –A Memória é uma ilha de edição). Foi mais ou menos nessa época, anos 90, que o Waly repetia em todos os vídeos dele essa frase, porque ele tinha sacado que ela fazia sentido. Eu e Rosane, gostávamos muito desta frase, que repetíamos muitas vezes nas nossas aulas. O que me apavora é que talvez a gente tenha sido professor de alguns destes imbecis, que depois levam isto pra alguma campanha política, porque isto pode acontecer, já que o nível de distorção das coisas boas em coisas ruins parece endêmico hoje em dia no mundo. É isto.

Sempre que mexemos em algum vespeiro, mais melado aparece. Outro amigo, o bamba Márcio Pinheiro publicou o seguinte texto no seu instagram. Aviso logo os amigos, a história é cascuda: A memória como capacidade de armazenar e recuperar informações é ao mesmo tempo uma bênção e um castigo. Tão intangível e tão pouco compreendida, a memória tem seus desígnios próprios. O que determina que tal fato possa ser armazenado no cérebro? E pior: por que outros fatos não podem ser esquecidos? Memória é o que nos prende e nos liga ao passado – para o bem ou para o mal. Mas pior do que ter memória, até para guardar eventos que mereceriam o esquecimento, é perder a memória. Com o guitarrista Pat Martino – morto em 1º de novembro de 2021, aos 77 anos – ocorreu isso. Mais de 40 anos antes, quando estava com 36, Martino precisou passar por uma cirurgia por causa de um aneurisma cerebral grave. A intenção era remover um emaranhado de veias e artérias malformadas, o que talvez explicasse porque ele sofria de ataques epilépticos, enxaquecas e, óbvio, depressão. A operação foi bem-sucedida, em termos. Nunca ninguém imaginou – nem ele nem os médicos – que tudo isso poderia desembocar numa amnésia profunda. Martino escapou da morte, mas ficou sem memória. Tudo se apagou. Martino perdeu não apenas todos os vínculos que mantinha com amigos e parentes como perdeu também a capacidade de exercer seu ofício. A única maneira de reverter seria começar da estaca zero, aprender tudo de novo. E foi o que Martino fez. O primeiro desafio era evitar a depressão. Confiar naquilo que amigos e familiares lhe diziam. O cérebro é uma coisa engraçada”, disse o guitarrista Pat Martino em uma entrevista à Nautilus em 2015. “É parte do veículo, mas não é parte de para onde o veículo está indo. O veículo irá levá-lo até lá, mas não é você. “
Incrível não é mesmo? Acredite se quiser, ele recuperou, de memória ou por instinto, a habilidade de tocar sua guitarra.
No mais, foi uma semana pra esquecer, com tantas coisas que gostaria de não lembrar. Tenho memória seletiva e sei que no fim das contas, só resta caminhar pro cemitério em passo de elefantinho. Com molho de tomate! A foto da capa mostra um guri no metrô da praça da concórdia, eu acho, não lembro quando… E como os chamados dos credores no celular não me deixam esquecer das contas, quem puder apoiar a corda com qualquer valor, o pix é fabpmaciel@gmail.com
Paz! Saravá!
links! links! e mais links!
memória de elefante:
sobre Qorpo Santo na cult e para baixar no domínio público:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action&co_autor=69
sobre Jerusa Pires Ferreira:
https://www.redalyc.org/journal/3996/399661475004/html/
sobre frances yates:
https://editoraunicamp.com.br/catalogo/?id=1245
sobre o teatro da memória:
pat martino:
na playlist # 125


as melhores músicas de ontem, de anteontem e de depois de amanhã.
iron butterfly, tubway army, can, noodzakelijk kwaad, asha puthli, bárbara eugênia, tim maia, jah wobble, raul cantizano, semblanzas del rio guapi, clayton barros e jorge du peixe, stereolab, the sorceres, jimi tenor, the jamaicans & tommy mccook, ezra furman, brian eno, deslocation dance, dolor de sombrero, franko xavier, artifical go, os pampa haoles, spaceheads, bike e barba negra, the spectre collective, hifiklub, the human league, afro hooligans, o terço, vale hermético, gang 90 e absurdetes, quintron & miss pussycat, tagua tagua, skowa e a máfia, erasmo carlos e gilberto gil, malcolm mclaren, marilina bertoldi, franklin gothic, katzroar, smerz, oruã, big long sun, autoramas, pat martino, column258, honny & the bees band, steve reich.

e a playlist # 125!

Deixe um comentário