na corda bamba 160 e as pequenas criaturas cheias de schadenfreude

Schadenfreude nem sai de cima é uma palavra alemã. Alemão gosta de juntar palavras e formar um conceito. Schaden: dano, prejuízo + Freude: prazer = aquele contentamento, aquela satisfação de sentir prazer diante da desgraça alheia.

Quando Beatriz fez 15 anos, ganhou de seu avô, um graduado cartola do Corinthians, uma viagem para Londres, onde pode ver Paul, Ringo, George e John saindo rapidamente de uma limousine e entrando num prédio e aqueles foram os segundos mais emocionantes da vida dela, que hoje cuida do neto e sabe o nome e o estado de saúde de todos os motoristas da linha 4716-10 Sacomã-Santa Cruz, o mesmo ônibus que o baiano Chico, depois de largar do batente como faxineiro do edifício Diversitá e de tomar uns copos no Bar do Miltinho, entra pra voltar pra casa, o micro lotado das 17.15, onde ele se espreme e conta em voz alta, sem se importar com quem está ao seu lado, casos de latrocínio, estelionato, cornitude, desvios, trambiques diversos e golpes de boa-noite cinderela aplicados em senhoras idosas e são as senhoras idosas, quase todas costureiras ou cozinheiras, que estão no ônibus das 17.15, são elas que se divertem com a história da desembargadora que acordou em outro mundo, numa dimensão muito além do Tatuapé, no céu das misses corações solitários, totalmente nua, sem nada mais além de seu corpo tratado com personal e buddah spa, agora costurado e remendado depois das 11 facadas, um corpo sem bolsa, sem acessórios, brincos, colares, pulseiras, sem nada de dinheiro e nem sombra da possibilidade de um pissirico porque no paraíso do Tatuapé nas nuvens, todo mundo chega com a cara repuxada e nem sempre em estado de Graça, que também é o nome de outra baiana, que trabalha no caixa do açougue Bom Boi e que sabe o meu cpf de cor, vai querer nota paulista? Graça faz pouco caso da desembargadora: Quem mandou dar mole pra Kojak e não segurar a coceira na xavasca? No dia seguinte, no Bar do Miltinho, o melhor pior bar da Saúde, tomo uma cerveja com o Chico, que repete a história pro Chicão, que vende espetinhos na esquina e que não deixa meus filhos atravessarem a rua correndo. Há alguns anos a casa ao lado do prédio onde moro foi alugada por uma família pouco familiar. Os caras faziam festas quase todas as noites, tinha sempre uns carros americanos estacionados na calçada (carros americanos mesmo: lincolns, cadillacs, daqueles que a gente só vê no Law & Order) e eles pouco se lixavam pra vizinhança, a polícia era chamada e nem piava, e uma noite um destes caras chegou armado no Miltinho. Chicão não se abalou. Olhou pro cara e mandou: Amigo, eu venho do Maranhão. Lá quem dá tiro, toma tiro também. E foi assim que eu fiquei sabendo que os caras eram ciganos tramposinos, colombianos parece, que revendiam carros de luxo roubados por aqui. Quando deixaram de entregar um carro para um delegado da área, deu ruim e tiveram que vazar. E foi assim também que a história triste da desembargadora do Tatuapé foi contada e recontada, uma história que não virou cena de sangue num bar da Av.São João, que não virou ronda nem música do Paulo Vanzolini, virou no máximo esta crônica chinelo escrita por mim. Uma história trágica que me lembrou do schadenfreude, que eu citei lá em cima. A citação cabeçuda eu tirei do livro Uma Vida Imaginária, as conversas da suíça Sieglinde Geisel (não basta ser Sieglinde, tem que ser Geisel também) com o argentino-canadense Alberto Manguel. Dois livros de Manguel abriram muitas portas e janelas na minha vida: Uma História da Leitura e Lendo Imagens. Manguel é um erudito, um humanista. Ainda acredita na kultur e na civilização, embora não tenha ilusões sobre o que está acontecendo no planeta. É um opositor declarado de Trump, não sei se ele já se manifestou sobre Gaza e o silêncio da maioria dos intelectuais judeus sobre a Palestina é vergonhoso. Mas Manguel sempre tem o que dizer. Mais importante ainda, Manguel faz a gente pensar. Neste livro, ele responde perguntas sobre a pandemia, sobre sua biblioteca de 40 mil volumes que agora vai ficar em Lisboa, sobre Borges (Manguel trabalhou como leitor para Borges), religião, Argentina, Israel, Nova Iorque, e da necessidade de se contar histórias, mesmo que muitas delas sejam schadenfreude…Em 2013 fiz um documentário sobre pessoas que criaram bibliotecas em suas comunidades e neste filme entrevistei diversos escritores. Manguel veio ao Brasil, eu não estava por aqui, mas dei um jeito e consegui que ele falasse para o Galáxias. Meu amigo Nuno Godolphin, acho que acompanhado pela Raquel Bertol, comandou a entrevista.

“Toda vez que fechamos um livro, esquecemos. A literatura está aqui para nos lembrar do que sempre esquecemos. Homero diz que os deuses nos dão desgraças para que tenhamos algo sobre o que escrever.”

o tempo e a bala na cabeça

e muitas vezes, histórias pavorosas, perversas e infelizmente, reais:

Manguel também é fã do Stevenson, escritor que salvou muitas noites da minha adolescência:

Ao crescer e virar adulto/ orgulhoso e de grande vulto/ pr’outras crianças direi, sem medos, que não mexam nos meus brinquedos. Robert Louis Stevenson

porto alegre, 84-85 foto: rochelle costi

No sexta-feira do dia 19 de julho de 1985, as 10 horas da manhã em ponto eu estava na porta de uma loja de discos que ficava debaixo do pilotis do edifício Sulacap na Av.Borges de Medeiros em Porto Alegre. Era meu aniversário. 20 anos. Eu tinha parado de estudar e pra não dizer que era um vagabundo de carteirinha, tentava aos trancos e barrancos engatar uma carreira como produtor de shows –paralamas e ultraje, este último, muito antes do roger fazer seu chá de revelação bebê-reborn galinha verde- e de empresário, junto com mais dois amigos, do TNT, uma banda de rockabilly local. Tinha casa, comida, roupa lavada e alguns trocados pra comprar o disco novo do Talking Heads, que havia chegado nas lojas naquela semana. O resto do dia foi todo na frente da vitrola. Quando o lado A terminava, colocava o lado B, o lado B acabava, virava e voltava pro A e assim foi até o fim da tarde, quando já sabia quase todas as músicas de cor. Eu tinha os discos anteriores da banda, mas Little Creatures era outra parada. Talking Heads deixava de ser um grupo indie-new wave pra fazer pop de mestre, como num disco dos Beatles. Um crítico da época disse que David Byrne tava querendo soar inglês e que a dupla inglesa do Eurythmics, que também tinha lançado um baita disco naquele ano, queria soar americano. Os dois discos, cada um ao seu modo, eram a cara daqueles tempos, a metade da década de oitenta. Tempos meio mais ou menos. A ditadura meio que tinha acabado, mas não tinha. O Tancredo meio que era democrata, mas era meio pilantra, e na sombra trabalhou contra as diretas e ganhou no colégio eleitoral, só que pouco antes de assumir, teve um piripaque, ficou no hospital um tempão, meio que vai não vai, bateu as botas e o bigode do Sarney assumiu. O bossa nova da UDN era meio democracinha e meio chama a polícia pra dar porrada. E nestas de meio pra lá e meio pra cá, era inflação alta pra caralho, e meia década perdida. E olha que com 20 anos, a gente meio que até acredita na vida e no futuro. E em 1985, o futuro não era exatamente esperançoso: Reagan, Thatcher, yuppies, ombreiras, mullets, ameaça nuclear, a careca do Gorbachev e o MDB pronto para governar quase todo os estados brasileiros. Não tinha como funcionar e eu meio que sonhava com a Rosanna Arquette. Meio lá nem cá, no fim daquele ano eu dei um jeito de me mandar de Porto Alegre. E esta é uma outra meia história. Na Corda Bamba edição # 160, acompanhado da espetacular playlist # 131, que tava pronta pra abrir com Talking Heads, mas como mr.Osbourne se foi, ela abre com Black Sabbath, Rock´n Roll Doctor, porque afinal de contas, If you wanna feel groovy, give the doctor a call, doctor rock will help you anytime at all. A lista tá cheia de bandas que ouvi muito com 20 e que sigo ouvindo agora com 60. E tem algumas coisas que tocavam no rádio, que muita gente torcia o nariz na época e que agora já liberaram pra poder gostar. Dá-lhe Luis Caldas e salve o pop de Pepeu Gomes. A corda super agradece a super chegada de Eduardo Camara. Quem puder assinar a corda, dá um confere nos botões vermelhos lá de baixo ou apoie com qualquer valor na chave pix fabpmaciel@gmail.com Saravá!

e pra não perder o costume: trump, nethanyahu, bozo, micheque, marmota, emebeelers, nazistas catarinas, faria limers, jornalistas do mercado e adjacências privatizadoras:

vão tomar no cu.

ozzy gremista metal

QUANDO O BRASIL ERA MODERNO SEGUE EM CARTAZ EM SÃO PAULO:

LINKS! LINKS! E MAIS LINKS!

o trailer de quando o brasil era moderno:

alberto manguel no teaser de galáxias, filme que fiz em 2013:

uma vida imaginária:

https://www.sescsp.org.br/editorial/alberto-manguel-uma-vida-imaginaria

talking heads na veia em 85:

o emílio pacheco fez este texto bem bacana sobre as lojas de disco de porto alegre.

https://emiliopacheco.blogspot.com/2014/11/antigas-lojas-de-discos-de-porto-alegre.html

rosanna arquette em after hours, scorsese nos ensinando a viver.

as sete vampiras:

titãs no chacrinha:

luiz caldas no fricote:

série para pensar na memória, na falta dela, e na maldade alheia:

south park redimindo a américa:

vem aí:

na playlist # 131:

annie!
gal profana e pop

black sabbath # talking heads # david byrne # dexys midnight runners # jonathan richman & the modern lovers # the style council # titãs # leo jaime # os hoppies de santarém # anne lloyd & bob miller # julio reny # los galax # joão bosco # stanley jordan # the colourfield # gang 90 & absurdetes # prefab sprout # roxy music # madness # big audio dynamite # chico buarque # pepeu gomes # tom tom club # lone justice # the ventures # os incríveis # the chakachas # jesus moreno # angel corpus christi # meno del picchia e otto # gal costa # eduardo dusek # stevie wonder # kid creole and the coconuts # prince # the b-52´s # nico # the black keys # clairaudience # eurythmics # ira! # tnt # felinni # the king of luxembourg # the cure # grace jones # patti smith # fine young cannibals # gilberto gil # john cale # the the # the jesus and mary chain # elvis costello # lloyd cole and the commotions # john zorn & bar kokhba # gil e preta gil pra fechar a parada.

e a playlist 131!