na corda bamba 173 e a estreia da série raiz: arte afro-brasileira contemporânea

Em 1923 o artista Lasar Segall mudou-se definitivamente para o Brasil. Um de seus primeiros trabalhos por aqui foi a série Mangue, um conjunto de desenhos e gravuras retratando a mais concorrida zona de prostituição do Rio de Janeiro naquela época. Em 1944 a série foi publicada em um álbum que ficou famoso não pelo vuco-vuco, mas pela força do desenho expressionista do artista. Segall era um judeu russo, nascido numa cidade que hoje é a capital da Lituânia, que tinha estudado na Alemanha, e que nesta obra, olhava para os trópicos em preto, branco e eventualmente, em verde e vermelho. Este não pertencimento a nenhum território -usando a linguagem de hoje- fez com que Segall retratasse tanto a imigração judaica, quanto a população afro-brasileira sem ser de forma caricata ou exótica. Na série Mangue vemos tristeza, sofrimento e melancolia, mas também algum afeto. Estou falando de Lasar Segall porque em 2017 me indicaram a artista e acadêmica Rosana Paulino para falar sobre o Mangue no próprio Museu Lasar Segall. O depoimento era para a série Arte Brasileira Quadro a Quadro, inspirada no livro de Rafael Cardoso, com direção minha e do Marcos Guttmann. Eu fiz o dever de casa apressado e nem me preocupei em pesquisar a biografia da Rosana. Tremendo animal ignorante! Quando a Rosana Paulino respondeu a primeira pergunta eu percebi que a pauta já estava garantida e que aquela mulher na minha frente não era uma simples acadêmica. Rosana Paulino falou do Segall, do Mangue, dos imigrantes e dos escravizados. Falou com conhecimento, segurança, colocou tudo no lugar, no seu tempo, deixou claro o que era estética, o que era política, o que era história, e melhor ainda, sem recorrer a linguagem usual de galeristas e curadores (com todo o respeito aos galeristas e curadores). Terminada a entrevista fomos almoçar e eu animado, propus uma série sobre arte afro-brasileira. Ela topou na hora e um mês depois já tínhamos um esboço de como seria: seis artistas (Rosana, Ayrson Heráclito, Eustáquio Neves, Emanoel Araújo, Dalton Paula e Sidney Amaral). Entre 2017 e 2021 RAIZ: ARTE AFRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA foi oferecida à uma dezena de canais de televisão e participou sem sucesso de outra dezena de editais de financiamentos. Finalmente em 2022 conseguimos a parceria com o Canal Curta!, em 2023 ganhamos o apoio do Fundo Setorial do Audiovisual, em 2024 filmamos e em 2025 montamos a série que estreia agora no dia 04 de novembro. Esta cronologia é importante por dois motivos: Primeiro para mostrar o tempo que se leva por aqui, entre a ideia inicial e a finalização de um projeto audiovisual. O segundo, e mais importante, foi a mudança total do panorama e da representatividade da arte afro-brasileira. Em 2017 eram poucos os artistas que tinham alcançado algum êxito, tanto de crítica, quanto de mercado. Curadores negros em instituições consagradas não existiam e historiadores, críticos, galeristas e colecionadores negros eram mais raros ainda. Em menos de uma década, o panorama mudou radicalmente. Por vários motivos. O mercado de arte mundial passou a exigir a presença de artistas afro-brasileiros em galerias e mostras de peso. Uma geração em parte beneficiada pela política de cotas nas universidades começou a abrir e conquistar espaço em instituições acadêmicas e museus. Mais importante: uma geração brilhante de artistas irrompeu e explodiu em eventos como a Bienal de Veneza e Art Basel, e estes artistas começaram a vender para importantes coleções internacionais, mostrando um Brasil que não está querendo se ver como uma representação pictórica dos estilos que vêm de fora. Mesmo que absorvam estes estilos. Foi esta geração que permitiu que esta série tenha 20 episódios (19 artistas e 1 episódio para curadores) e não tenho dúvidas, existe fôlego para muitas outras temporadas. Estes artistas estão colocando em prática e sem intermediários, tudo aquilo que a antropofagia tentou fazer mas não conseguiu realizar plenamente. Eles derrubaram a hierarquia e enterraram definitivamente o conceito de arte popular, arte primitiva, naif e diversas outras classificações que no fundo só serviam para perpetuar a desigualdade em um outro campo: o simbólico. A ruptura já aconteceu, sem precisar de furifofó no Teatro Municipal. Como diz o Jaime Lauriano: Não é sorte, é Exu. Dizem que artistas, poetas e jornalistas são as antenas do mundo. Eu, como documentarista me incluo na jogada e afirmo que em 2017 a minha parabólica estava completamente desconectada. Quando veja a surpresa e a perplexidade das multidões e das multidinhas que percorreram mostras como a “Histórias Afro-Atlânticas” e “Dos Brasis”, lembro da minha toupeirice e penso também no tapa olho que disfarçadamente, ainda tentam impor pra toda a patuléia. A história da arte brasileira não poderá mais ser contada como foi até muito recentemente, exatamente no tempo em que esta série foi gestada e finalizada. E eu vou agradecer para sempre a Rosana Paulino (e a todos os artistas e curadores), por terem aceitado a empreitada, mas principalmente, por terem deixado eu entrar nesta casa também. Na Corda Bamba # 173 está na rede e traz uma conversa com o artista mineiro Eustáquio Neves, um fotógrafo da pesada e um guitarrista que pesa a mão nas horas vagas. Raiz estreia com o episódio dele. E como sempre, tem links e a playlist fiat lux #147. Saravá!

rosana paulino

antes de começar, Eustáquio Neves , pra quem ainda não conhece:

Nasceu em Juatuba, MG, em 1955. Sua obra aborda a identidade e memória afro-brasileira – tema de ensaios como Arturos (1994), em que retratou uma comunidade negra remanescente de quilombos em Contagem (MG), Futebol (1998) e Objetivação do corpo (1999). Em Retrato falado (2019), projeto vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2019, reconstruiu o retrato do avô, que não conheceu e de quem não tem imagens nos álbuns da família, a partir de descrições de parentes e de recursos analógicos e digitais de manipulação fotográfica. É químico de formação. Recebeu o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Funarte em 1994 e expôs em mostras como o 5º Rencontres de la Photographie Africaine (Bamako, Mali), e na 2ª Bienal do Tokyo Metropolitan Museum of Photography  (Japão) e na Bienal de São Paulo de 2023. Suas obras integram as coleções Pirelli/Masp, MAM-SP, Itaú Cultural, Museu Afro Brasil (São Paulo, Brasil), entre outras.

eustáquio em seu laboratório

Esta entrevista foi feita em Diamantina, no verão de 2024. Durante um dia de sol e chuva, perambulamos por uma reserva florestal, uma fábrica abandonada e a casaescritório-estúdio-ateliê de Eustáquio.

de vez em quando tinha umas encruzilhadas

FM: Podemos começar pelo começo? Família, infância…

EN: Eu nasci numa cidade bem pequena, em Juatuba, que fica hoje praticamente na grande BH. Mas em 55, quando eu nasci, quando eu nasci, era uma cidade minúscula, de pouco mais de 2 mil habitantes, talvez menos. E… a cena que a gente fez hoje com aqueles galhos, tem muita ver com minha formação. (filmamos Eustáquio deixando galhos, flores e ramos na Estrada) São práticas hereditárias, que a gente vai recebendo de uma geração para outra e você traz isso pela vida. Às vezes você nem pensa, mas em algum momento, você está aplicando isso. Em Juatuba, que é esse lugar que eu nasci, a comunicação ainda era por carta. Mas meus parentes moravam em lugares diferentes. A origem da minha família é Pará de Minas, eu tinha tios em Belo Horizonte, em Ibiá… E quando a gente tinha uma notícia de que ia receber algum parente, você tinha que sinalizar o caminho para eles, que a gente morava no interior do interior, né? Para ir até a escola, eu caminhava em média três quilômetros, por estradinhas, etc. Então, uma pessoa que estava vindo de fora, ela precisava de uma sinalização. E minha mãe pedia para colocar esses galhos, com a ponta virada para a direção que a pessoa deveria seguir. E tinha algumas encruzilhadas… E daí, entra o senso de comunidade, né? Que eu trago comigo, inclusive, no meu trabalho até hoje. Desse senso comum, né? Do respeito pelo outro, que qualquer pessoa que passasse por aquele lugar ali, ela não ia mudar o sentido daquele lugar. Uma coisa que é importante sobre esses aprendizados é que…  sem querer ser didático, mas nós, pretos, nossos antepassados, quando vieram para o Brasil, essa migração forçada, o que eles traziam na bagagem era o conhecimento que ele trazia no corpo. Ele não vinha com o passaporte, não vinha com o utensílio, não vinha com nada disso. Era com conhecimentos e esse conhecimento ele é passado de uma geração para outra.

FM: E a sua mãe fazia o quê? EN: Ela era cuidadora do sítio da família Prates, uma família tradicional de Minas, inclusive um deles depois virou cineasta. A nossa função era cuidar do sítio… Quando eu fiz onze anos, eu fui criado com um padrasto eu não tive contato com meu pai. E eu sempre fui uma pessoa muito geniosa. E quando a gente se desentendia, minha mãe me mandava morar com uma tia. Então eu fui para Belo Horizonte e esta tia nem sabia que eu estava indo para lá. Minha mãe botou minhas coisas numa malinha, um bilhete dentro e me botou no trem. E eu tive que ficar memorizando os lugares que eu tinha passado ali com ela…eu sabia o nome do bairro e cheguei, cheguei na casa da minha tia. No bairro São Marcos.  E logo que eu cheguei eu consegui um trabalho, trabalho para criança, que eu estudava de manhã e trabalhava na parte da tarde. Eu lembro que eu passei com a minha tia no Parque Municipal, tinha um colégio, que não existe mais nesse lugar, mas era dentro do Parque Municipal de BH, que é um lugar lindo, não sei se chegou a conhecer.

FM: Você é a terceira pessoa que eu conheço que estudou nessa escola. A Priscila Rezende estudou lá e a atriz Rejane Faria também.   EN: Era um colégio muito bom, nós éramos os rivais do Estadual Central e do Marconi, a Dilma, acho que estudou no Estadual Central. Então a gente era inimigo desse povo, a gente disputava todas, gincanas, futebol de salão, essas coisas todas.

no meio do caminho tinham postes airless

FM: Eu queria que você falasse um pouco do projeto dos postes que você está fazendo agora. EN: Eu trabalho muito no que está no meu entorno. Aqui em Diamantina tem uma fábrica desativada, uma fábrica têxtil. E essa fábrica, eu não lembro exatamente se ela que fornecia energia para algum lugar, ou se a energia que era para gerar as máquinas da fábrica que vinha de fora. Mas tem os postes que ficaram abandonados. Me interessou e eu comecei a minha pesquisa. Fui na fábrica algumas vezes, o maquinário todo parado, alguns deteriorados. E esses fios, esses postes sem fios. Eu batizei esta série de airless… Eu não tenho muita pressa em terminar as minhas séries. Às vezes eu passo de uma para outra, na verdade, é a série que decide a hora que ela tem que ser feita, não sou eu.

o tempo estendido no varal

FM:Você tem pressa para alguma coisa? EN: Não. E depois que eu conheci Tarkovski, então… Eu perdi totalmente a pressa de fazer qualquer coisa.

FM: Mas o Tarkovski, não tem uma madeira aqui para bater, ele teve um câncer, né? EN: Eu também tive.

FM: É curioso que eu ganhei, muito recentemente, de uma aluna do Cine BH, um catálogo sobre o Tarkovski. De uma mostra que teve em BH. E lendo este catálogo, eu percebi que quando eu vi os filmes dele, eu era muito jovem, impaciente… Acho que não dá para entender o que é o Tarkovski sendo jovem. EN: O tempo dele para mim é muito fascinante, sabe? Ele não te esgota a paciência porque você quer chegar aonde ele vai chegar, mas ele demora para te levar a esse lugar. Ele te deixa fazer um percurso. Eu gosto de contar histórias. E eu quero contar a história dentro de um fotograma. Eu junto vários fotogramas de cenas que, a princípio, parecem não ter conexão nenhuma. Mas no final do trabalho eles fazem muito sentido. Porque eles criam uma narrativa. Eu comecei a perceber que as pessoas, quando param na frente de um trabalho meu, começam a ver coisas, as vezes coisas que eu mesmo não tinha percebido.

FM: Você citou um cineasta. Tem algum fotógrafo que seja referência para você, do seu trabalho? EN: Não. A minha referência é o Artur Bispo do Rosário, tanto que a minha rua se chama Artur Bispo do Rosário. Porque quando eu comecei a fazer esse experimento com a fotografia, eu ainda não tinha muita certeza do que eu queria, de qual era o caminho. E ainda tinha os amigos puristas que falavam…E aí eu comecei a ficar sem dinheiro. Quando eu decidi fazer a fotografia que eu faço hoje, eu tive que abrir mão de uma série de coisas.

FM: Mas como o Bispo do Rosário te capturou? EN: Eu fui ver uma exposição dele no Museu da Pampulha. Isso acho que é 89, 90. E quando eu vi o trabalho dele, eu falei assim: Se esse cara fez isso, eu posso fazer o que eu quiser com a minha fotografia. Então ele me libertou para fazer a fotografia que eu faço. E também desde sempre eu fugi muito dessa coisa colonialista. As referências que eu via na fotografia, nos cursos, ela era toda europeia. E essa fotografia não servia para contar a minha história.

os arturos

FM: Você conseguiu batizar a rua onde mora como rua Artur Bispo do Rosário. EN: Mais ou menos 15 anos atrás, a gente estava buscando um terreno, e acabou descobrindo esse terreno aqui, que era uma coisa da infância, da Líria. Não tinha rua. Tinha uma mata, e três casinhas. A gente teve que abrir rua,  trazer água, trazer a luz, e eu fiz tudo isso. Paguei a extensão de água, fiquei em cima da CEMIG para trazer a luz. Enfim, teve toda uma saga, para chegar no que é hoje. Depois de tudo pronto aí que tem esse processo de dar nome pra rua, eu procurei o presidente da Câmara na época, levei um catálogo pra ele conhecer a história dele. E ele gostou. E aí deu o nome pra rua. E tem o número que é oito oito, que é essa coisa do infinito duas vezes, né? Então tudo conspirou,  Essa casa, Lilian, minha mulher, a gente construiu, não tinha nenhuma pretensão que fosse uma casa grande. A casa foi crescendo e acabou que ela ficou muito comentada na cidade. Esses comentários chegaram até um programa de TV. E a primeira pergunta que a pessoa me fez foi sobre porque eu tinha construído uma casa contemporânea, numa cidade de arquitetura colonial. Aí eu voltei a pergunta pra ele e perguntei: Onde que eu estaria morando no período colonial? Dentro daquela arquitetura que eu não estaria, com certeza. Então, por mais que seja uma arquitetura bonita, não é a arquitetura que me representa.

FM: A sua fotografia tem tanta personalidade, que a gente até começa a identificar, ou a pensar, isto parece obra do Eustáquio. É muito peculiar, ela não é realista, mas ela dialoga com o realismo, ela dialoga com a pintura, com o sonho, com o surrealismo. Ela dialoga com tanta coisa, ao mesmo tempo, com o punk, porque tem mais que me ler uma coisa meio punk. Como é que você chegou nesse… eu vou quero usar a palavra formato… EN: Eu não tenho na verdade, um processo específico. Eu procuro resolver ideias e para resolver essas ideias, eu vou por vários caminhos. Nos últimos trabalhos eu fui mais para a pintura, que também não deixam de ser fotografia, então, um pouco dessa coisa da fotopintura, mas não é aquela fotopintura clássica, é a minha fotopintura, é o jeito que eu sei pintar.

FM: Mas não é o retrato pintado, colorizado da fotografia de família, do Nordeste. EN: Não, não é. Mas tem a inspiração naquilo ali, mas não é aquilo. É uma outra fotopintura que dá conta do meu discurso aqui, no caso. Tinha uma coisa que eu queria falar muito. Eu tinha uma galerista em Houston, isso nos anos 90. nas minhas primeiras saídas no Brasil. Ela fez uma exposição minha, e essa exposiçã fez muito sucesso. De mídia, de público, de venda, vendeu tudo praticamente. E eu voltei de lá muito incomodado. Pensei: as pessoas não podem gostar tanto de alguma coisa assim, sabe? E eu mudei meu trabalho a partir dali. Tem um recorte no meu trabalho a partir dos 2000, que eu fazia uma coisa e comecei a fazer uma outra coisa. Então, eu vivo me provocando sempre, né? Eu não me acomodo.

uma comunhão

FM: Então, de onde parte um trabalho como esse? (uma foto pintada a mão, de um garoto que parece o garrincha, com uma camisa que pode ser do Galo, ou do Botafogo) EN: Esse partiu de uma foto minha da primeira comunhão. Eu fiquei pensando sobre essa fotinha, e como eu vou dar outro significado para ela. Essa série ela se chama Sete, porque você faz primeiro a comunhão quando você tem seus sete anos. E basicamente o que eu fiz foi trocar os elementos da Igreja Católica que a criança traz na mão, nessa foto, que é uma vela e um livrinho de catecismo por outros elementos. A fotinha original foi reproduzida, ampliada, isso aqui não é um papel fotográfico, esse é um papel de aquarela. Aí eu uso emulsão fotográfica, eu torno esse papel um papel fotossensível, e vou trazer essa imagem do original para aqui, no laboratório fotográfico. A partir daí que eu vou pintar em cima. Claro que quando você faz esse papel, principalmente no caso dessa série, que eu tinha um monte de restinhos de emulsão fotográfica, na bula da emulsão diz para usar até no máximo em seis meses. Tem coisa minha aí que tem quase seis anos, entendeu? E cada uma dá um resultado diferente. E eu aproveito essas diferenças que o resultado me traz para trabalhar.

outra comunhão

FM:Como é que você chegou na fotografia? EN: Em 1980 eu terminei meu curso de química. E meu primeiro emprego foi no interior de Goiás, uma mineradora de níquel, num lugar chamado Niquelândia, Era um interiorzão, era uma vida solitária. Quando saiu o primeiro salário, eu comprei minha primeira câmera. E essa câmera virou meio que um diário, um caderno de anotações. Eu saía todo dia e fazia fotos ali no entorno da vila de trabalhadores ali onde eu vivia, e fui tomando cada vez mais gosto por isso. E as pessoas começaram a me pedir para serem fotografadas. E fiz um mapeamento de fauna e flora ali que virou cartão postal, como a maioria da mão de obra especializada ali da empresa, era de pessoas de fora, então o colega mandava uma fotinha minha com dedicatória atrás para a mãe, para a namorada, para amigos, enfim. E chegou um momento assim que eu nem mexia mais no meu salário, ficava depositado lá no banco, e eu só vivia daquele dinheiro, das fotos que eu fazia nas horas vagas do meu trabalho. Tinha um curso completo de fotografia da Rio Gráfica, era um curso que você comprava nas bancas de revista. Eu fiz todo o curso.

fotopintura

A minha escola de fotografia foi fotografar de pouco um tudo. Eu fotografava de recém-nascido a recém-morto, Porque as pessoas tinham a prática de fotografar o parente morto, né, o bebê que nasceu morto. Tem outra cena que é muito interessante aqui, também desse período que é de um cara que cortou uma árvore gigantesca, e ele foi até o estúdio para eu fotografá-lo, porque ele estava muito orgulhoso disso.  E um dia o meu chefe chegou para mim e falou: Eustáquio, o seu lugar não é aqui, sabe? Ainda fiquei um ano lá, até que chegou um momento que eu falei, cara, acho que é hora de eu ir embora, que eu senti que a minha fotografia tava evoluindo. Me mandaram embora com todos os meus direitos. Eu tinha uma Brasília, enfiei as minhas coisas todas dentro dela e voltei para BH.  E lá, Eu costumo dizer, que eu sou cria do Festival de Inverno, um grande Festival de Artes, que englobava todos os segmentos das artes, e vinham artistas de várias partes do mundo e do Brasil. E tinham os workshops, né? Eu morava em Contagem nessa época, Contagem que tem um grande centro industrial, de indústrias poluentes, cimento, magnésia e tal, E havia um grande debate sobre essa questão na época, estava em todas as pautas de jornal, TV, da comunidade discutindo sobre como tirar essas indústrias de lá. E esse assunto me levou a fazer o Caos Urbano, que é a minha primeira série. E junto com outra série dos Arturos, o meu trabalho começou a despertar o interesse das pessoas.

FM: Por mais que você tenha essa ligação com o campo, com a roça, com o interior, tem uma coisa meio punk, meio suja? EN: Porque tinha um movimento punk em Contagem. Tinha a banda do lixo, que os caras eram amigos meus, né? Eu tretava com todos as tribos, eu tinha meus amigos do punk, tinha meus amigos do clássico, porque eu fazia violão clássico, mas na hora de tomar cerveja de graça, por exemplo, era com um amigo punk. Todos esses movimentos, o movimento de skate, a pista de skate, a primeira pista de skate, não foi em BH, foi em Contagem, E eu sempre tive uma cara de bonzinho assim, mas era, às vezes, o cara mais danado da turma.

caos urbano

FM: E aí, como é que você foi para Londres? EN: Tinha um mês da fotografia em São Paulo, que era bem importante esse mês da fotografia. O Rubens Fernando, historiador de fotografia, tinha descoberto o meu trabalho. Em 93, me parece, convidaram o Marc Sealy, que é o diretor da Associação dos Fotógrafos Negos de Londres. Aí me ligam lá de São Paulo: Você tem que vir para cá. Não tem dinheiro? Dá um jeito. Tem um cara preto, diretor da Associação dos Fotógrafos Pretos que quer te conhecer. Aí eu fui, e sempre que a gente se encontra, ele conta essa história aumentando o drama, coloca Minas Gerais muito mais longe do que realmente é. Mas ele conta que se apaixonou pelo trabalho e foi por isso que eu fui para Londres. E depois, em 1999 ele me deu uma bolsa para eu ir para ficar 2 meses e da segunda vez eu fiquei mais 4 meses.

FM:A sua família era católica? EN: Era muito católica. Só tinha um tio que era mais do lado da macumba, e a família discriminava ele, cara.

FM: Mas tem uma coisa meio fantasmagólica no seu trabalho, não tem isso? EN: O meu trabalho às vezes traz surpresas pra mim, Chega um momento que o trabalho é ele que te leva, né? Você tem um foco, começa a debruçar sobre aquilo e de repente essa coisa começa a te levar pra algum outro lugar e te traz surpresas que são bem vindas, né?

outros navios

FM: Como a série do futebol? EN: Essa série do futebol, eu morava no Bairro Santa Teresa, em BH. Eu passava de metrô e via esses meninos jogando. No fim do dia. A luz era a mais bonita,  tinha um contraluz no Campinho de Terra batida. Atrás ficava uma fábrica de parafusos, não sei se você sabe, mas numa fábrica de parafusos, eles jogam a serragem no chão para absorver o óleo que cai das máquinas, com certeza, eram máquinas velhas. Depois eles retiravam aquela serragem e levavam para o fundo da fábrica pra queimar. Aí tinha uma fumaça e tinha o pó, e eu queria essa atmosfera caótica para a realidade desses meninos.. E comecei a frequentar lá. Eu ia com a câmera, sempre com duas câmeras, e ficava lá assistindo, não fazia foto, até eles acostumarem comigo. Aí um dia, eu cheguei, eles não estavam jogando ainda, eles estavam jogando capoeira, fazendo uns mortais e tal. Falaram, faz uma foto aqui, fazendo um mortal aqui. Aí eu fiz… Peguei a a segunda câmera, com um negativo cor. No dia seguinte, cheguei lá com as fotinhas para ele. Aí eu já estava liberado para fazer meu trabalho. E comecei a fazer o meu preto e branco, n a luz que eu queria e tal. Fiquei acho que um mês, fotografando eles.  É preciso ter um respeito pelo tempo, não só o tempo para produzir, mas o tempo de se amadurecer. Às vezes tem trabalho que você precisa abandonar, deixar ele ali maturando e tal. E depois você retoma, você vai para um outro, enfim. Eu levei mais de um mês, só para me aproximar. Mais um mês ali, só fotografando. E depois, mais uns seis meses, para chegar no resultado que chegaram essas imagens.

futebol em bh

FM: Quem é este? EN: Este é o Crispim, ele era o embaixador do Catopê, é uma modalidade muito exclusiva dessa comunidade do Quilombo do Ausente. É uma mistura meio indígena com as matrizes africanas, né?

FM: Tipo um terecô, que tem lá no Maranhão e no Pará, né? EN: É, porque eles usam, às vezes, uns cocares e tal. Mas ele era… como um embaixador, ele saía com a capa na frente do cortejo, né? Que é a Nossa Senhora do Rosário, que vem atrás. E ele vai riscando o chão com uma espada, como se limpando o caminho pra Santa, pro cortejo que vem trazendo a Santa. E quando morria alguém na comunidade, ele era a pessoa encarregada de fazer a passagem da alma dessa pessoa pro outro plano, com rezas e cantos. Ele tinha essa função dentro da comunidade, que foi passada agora pro Ivo, que ainda tá vivo e também que detém este canto. Eu não sei se depois do Ivo terá alguém pra dar continuidade. Eu não vejo… Bom, não frequento tanto lá pra saber.

FM: Você comentou que é filho de Oxóssi. EN: Sim, eu descobri isso na Bahia, quando eu passei um tempo, fui pra Bienal da Bahia. Mas era bem mais uma necessidade do que uma curiosidade. Que só confirmou a minha ligação muito grande com a natureza, principalmente com a mata. Eu tive uma infância muito rica, até hoje eu misturo muito o que é esse ser interiorano com grande cidade. Eu nunca me espantei com grande cidade, lido muito bem com isso. Mas lido muito bem com lugares muito pequenos, com a mata e as coisas da roça.

crispim e a espada

Eustáquio pega um pequeno livro de fotos de Tarkovski. Ele está sentado num canto de seu escritório. EN: Esse é um livro de polaroids do Tarkovski. O meu primeiro contato com a obra do dele, foi com o livro Esculpir o Tempo. E um tempo depois eu ganhei esse das polaroids dele, de um amigo músico.

FM: Tem uma grande discussão sobre como ele dilatava e controlava o tempo. EN: Sim. Eu acho que o grande desafio é você fazer algo que vai totalmente contra o que o capitalismo te impõe. O capitalismo te impõe um tempo que… você tem que ter alguma coragem para ir contra esse tempo, para subverter esse tempo que o capitalismo te impõe.  No quilombo do Ausente, Dona Anísia me ofereceu um café. E ela foi para o quintal. E começou a colher cana. Aí chamou a filha e as duas começaram a moer aquela cana. Depois eu fui entender que era porque eles não adoçavam o café com açúcar industrializado. E eu lembrei da minha professora falando que fazer um café era um processo químico. Depois ela foi na horta, pegou folhas de quiabo e jogou na fervura da cana. Eu achei estranho e ela falou: Espera um minutinho que você vai ver o resultado. Toda aquela impureza do caldo da cana grudou na folha e a água ficou limpinha. Só depois disto que ela fez o café, com o café que ela plantou, colheu e torrou.

FM: Eu odeio o capitalismo, mas adoro café expresso!

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a última comunhão

Para assistir Raiz: Arte Afro-Brasileira Contemporânea :

A série contará com 20 episódios e estreia no dia 04 de novembro, às 18h, no Canal Curta!

Disponível nos canais 56/556 (Claro/NET), 75 (Oi TV), 664 (Vivo TV) e em operadoras da Neo TV.

No streaming CurtaOn, estreia também em 04/11, com 5 episódios por semana. Assista pela Claro, Amazon Prime Video ou em curtaon.com.br

paulo nazareth em casa

os artistas e curadores da série:

Eustáquio Neves, Helô Sanvoy, Priscila Rezende, Renata Felinto, No Martins, Jaime Lauriano, Aline Motta, Charlene Bicalho, Rebeca Carapiá, Juliana dos Santos, Ayrson Heráclito, Moisés Patrício, Antonio Obá, Tiago Sant’Anna, Augusto Leal, Dalton Paula, Panmela Castro, Lorraine Mendes, Igor Simões, Hélio Menezes, Marcelo Campos e Rosana Paulino.

rebeca carapiá e seu irmão em ação
lorraine na pinacoteca

A equipe:

direção e roteiro: Fabiano Maciel curadoria: Rosana Paulino produção executiva: Leonardo Dourado fotografia e câmera: Reynaldo Zangrandi som: Raul Gomes edição: Fabiano Maciel e Daniel Gomes música original: Marquito Felinto sonorização: Ricardo Bento design gráfico e abertura: Daniel Brito diretor de produção: Julio Carvana produtora de finalização:Jullia Aranna imagens adicionais: Ricardo Beltrame colorização: Guilherme Pozzibon sons transcendentais: Ronan Coelho produção: Telenews Service

o super obrigado para Leonardo Dourado, que topou encarar esta parada na Telenews, para o Julio Worcman, Claudia Lima e toda equipe do Canal Curta! para a equipe da Rosana: Caio, Helen, Irana, Maria Aparecida e Ricardo Paulino

e para as equipes do MAC-USP, MAR Rio, Pinacoteca SP, SESC, Centro Cultural SP, Sertão Negro, Museu Afro Brasil, Museu da Língua Portuguesa e MAC Bahia.

com dalton paula no sertão negro

As fotos de equipe e dos artistas são de Reynaldo Zangrandi. Na Corda Bamba deseja as boas vibrações de sempre pra geral. E pra não perder o hábito, deseja uma banana para almas sebosas como o governador do Rio de Janeiro e seus coleguinhas de SP, MG, SC, RS, GO e MT. No mais, este blog embananado está sempre precisando de ajuda. Para assinar, é só chegar nos botões vermelhos lá de baixo. E para apoiar com qualquer valor a partir de R$ 5,00, a chave pix é fabpmaciel@gmail.com

Saravá!

LINKS! LINKS! E MAIS LINKS!

Um teaser da série:

a página no canal curta!

https://canalcurta.tv.br/busca/?termo=%22raiz%20arte%22

eustáquio neves no instagram:

https://www.instagram.com/eustaquioseven/

eustáquio na bienal de 2023:

https://35.bienal.org.br/participante/eustaquio-neves

as polaroids de Tarkovski:

e na segunda:

ATO EM DEFESA DO AUDIOVISUAL BRASILEIRO INDEPENDENTE

Se junte à mobilização essa 2a FEIRA, 03/11/25, nos seguintes locais:

  • SP: Cinemateca Brasileira – Largo Sen. Raul Cardoso, 207 – 17h30
  • RJ: em frente à Ancine – Av. Graça Aranha, 35 – 17h30
  • Incluir capitais conforme mobilização

HORA DE IR PRA RUA!

MOBILIZAÇÃO PELO VOD

tommy mccook dynamite!

na playlist # 147

não é fiat, não é fiat lux, é raiz, é raio, estrela e luar.

afrohooligans a banda de marquito felinto, o autor da trilha de RAIZ, a dinamite de tommy mcoock e seus supersônicos, the isley brothers cantando spill the wine, sucesso do war, canção do sal, ainda comemorando o aniversário de milton nascimento, hugh masekela no disco que ele fez pra motown e que quase ninguém ouviu. eu nunca canso de ouvir a versão dele pro sucesso das supremes, you keep me hanging on, lucas santtana e gilberto gil cantam a última flor do lácio, pedro santos, também conhecido como pedro sorongo, manda ver em ritual negro, juçara marçal canta damião, cliff richard é rocker, portanto baby, move it, david bowie porque eu lembrei do refrão de velvet goldmine, post pop é uma banda argentina que eu ainda não sei se gosto. mas considerando o que anda acontecendo por lá, é bom considerar. pelados no balanço de pelados sabem demais. sophia chablau e felipe vaqueiro estão viciados em carinho, kali uchis quer o seu dente no pescoço dela, maurice mobetta e kamasi washington te dão o tempo pra isto. de vol pra comemorar a saída de bonner e pra desejar nada para seu sucessor, o esquema torto de sempre vai seguir. o baile cai no lesco lesco com steely dan, sopwith camel, lavínia e otto, hyldon, durand jones & the indications, black pumas, david byrne e hayley williams da trilha de os pestes, xamã e ana frango elétrico, karina buhr te dá mais chance, mateus fazeno rock pede sossego, sérgio sacra diz que já chegou ao fim, flerte flamingo vai de pompoarismo amador e o giro muda com terry reid, boz scaggs, elvis costello, mr.paul mccartney (como podem ter dito na época que este disco era ruim!?!), kate bush, giro muda de novo com senõr soul, no tambor de aboio de joão pires, na bossa torta de rogério skylab e clara bicho, no sussurro de sophie barker com o zero 7, giramundo com brian eno, sparks, durand jones do disco novo, tower of power, the isley brothers no bis, giranova com antibalas, letieres leite e orkestra rumpilez, quarteto em cy, o espetacular donny hathaway em misty, outra do pedro sorongo, stevie wonder falando com as plantas, bauhaus, porque ontem foi halloween e afrohooligans pra fechar a corda.

e a playlist # 147!