divagações inúteis sobre bares e restaurantes com murais pintados e sobre casas e palácios com azulejos. o que une restaurantes de porto velho, porto alegre, são paulo e rio de janeiro?

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia. “
A frase do escritor russo Leon Tolstói é uma das mais replicadas no planeta e aparece com frequência em ensaios, artigos, reportagens e coletâneas de citações espertas e edificantes. De modo geral ela serve muito bem para:
1-impressionar alguém na mesa do bar.
2-fingir algum conhecimento de literatura, e melhor ainda, de literatura russa.
3-começar o prefácio de algum livro de caráter regionalista.
4-justificar a chatice de algum texto, regionalista ou não.
Eu mesmo já utilizei a frase algumas vezes nas duas primeiras situações listadas acima. Agora, pra completar a lista, vou usar parcialmente o terceiro exemplo, como recurso barato pra começar este texto. O quarto, eu vou guardar no bolso, caso precise me defender no futuro. Posto isto, vamos ao texto.
O meu restaurante favorito em Porto Alegre se chama Copacabana, que frequento desde que me entendo por gente e sempre que volto na capital da “Bagualândia”, dou um jeito de ir. Também, sempre tentam me demover da ideia: tá muito caro, tem outros italianos muito melhores, a comida não é mais a mesma. Não ligo e vou. O Copacabana foi fundado por calabreses, assim como era calabrês o meu avô Antônio, que levava desde sempre a minha mãe Cármina, a minha tia Cantídia e o meu tio Francisco pra comer rascatelli com polpettone recheado. Mas o que importa mesmo no Copacabana, além da foto do Lupicínio Rodrigues na parede, é o mural pintado no salão principal. A pintura não é nada demais, muito pelo contrário. Mas o que faz esta pintura ruim ser tão bacana, é que ela, junto com a comida, é claro, é a responsável pela atmosfera do Copacabana. Não interessa se tem foto do governador, do prefeito, do De León ou do Valdomiro e é certo que muito em breve, uma foto do Luizito 100% de aproveitamento no gauchão Suárez vai estar emoldurada na parede. O que interessa é que 99% dos restaurantes e bares que ostentam uma parede com um mural pintado ou com um painel de azulejos, truco, aposto e ganho, tem comida boa e muita atmosfera. E quase sempre, as duas coisas juntas.


No início dos anos 90 o bar Jobi estava longe de ser o mais disputado da zona sul do Rio de Janeiro. Apertado, com sujeira acima do tolerável, as mesas eram improvisadas em compensados jogados por cima dos barris de chopp, que ficavam espalhadas pela calçada de pedra portuguesa, sempre suja também. Entre o Luna Bar, o preferido de Alceu Valença, o Real Astoria e a Pizzaria Guanabara, o Jobi servia pra tomar a saideira ou pra comprar cigarros. O Diagonal, poucos metros adiante só servia pra ir quando todos os outros estavam lotados. Mas eis que um dia o Luna Bar fechou. E depois o Real Astoria. E o Jobi, comendo pelas beiradas, foi se transformando no bar preferido de nove entre dez moradores do Leblon e de nove entre dez turistas, fossem eles gringos ou goianos. E foi virando um bar de famosos ou não, ricos ou não, jovens ou não. O Jobi tinha o melhor garçom, o Paiva e o dono mais resmungão, o Narciso. Eu ia tanto lá que quando precisei ter um cnpj pra poder emitir nota fiscal e receber pelo meu suado trabalho, não tive dúvida, batizei minha empresa de Jobi Filmes. Narciso resmungou. O bar nunca fez água. Já a Jobi Filmes… Uma manhã, abro o JB e leio a notícia: Chicô Gouveia, o decorador mais disputado da cidade vai reformar- de grátis- o Jobi. Fiquei nervoso. Eu não conhecia o Chicô e já tinha implicância, começando pelo apelido, como alguém não quer ser Chico? Tem que ser Chicô, afrancesado? Isso é frescura de decorador. Temi ante a possível transformação do bar em uma butique e pior, temi ante a possível mauriçolização de meu boteco favorito. Por sorte, me enganei. Chicô fez o que o bar precisava. O Jobi ficou mais limpo e ordenado onde precisava ficar.


A grande sacada de Chicô foi resgatar uma pintura mural que estava escondida e esquecida na parede há pelo menos duas décadas. Quando fez o mural aparecer novamente, Chicô resgatou a bendita atmosfera. O painel era de Nilton Bravo, o rei dos pintores de parede de boteco, o Michelangelo das paredes de bar da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Nilton pintou dezenas de murais, em dezenas de bares da cidade, na zona sul, no centro, na zona norte. Nos anos 80 foi redescoberto, e o que era considerado kitsch virou cult, o que era considerado brega virou arte e as telas que Nilton pintava com incrível rapidez e vendia nas feiras de artesanato quadruplicaram de preço. E os preços do Jobi também quadruplicaram. E a nova atmosfera fez o bar mudar de frequência. Os marombados que nunca saíam do Clipper começaram a aparecer. E trouxeram junto com eles os playbas dos infernos das areias escaldantes. Estes, em sua imensa maioria, jovens reaças e obtusos criados com tudo di bom enquanto mamãe se via na novela do Manoel Carlos e papai pedalava no calçadão. Como não bastasse, vieram também os velhos reaças, militares aposentados, comerciantes enfastiados e outros decrépitos que não aguentavam esperar um banquinho no Bracarense. Assim, de um dia pro outro, de uma noite qualquer de segunda-feira pra outra, aquela velha, boa e saudável mistura de gente, que garantia a atmosfera do bar, foi pras cucuias. Ainda passo por lá, quando estou na cidade. Rapidinho. Pela manhã, ou bem tarde da noite, quando os velhos patriotas do Leblon já estão fora de combate. O painel do Nilton Bravo resiste a tudo. Até aos patriotas.


O melhor restaurante de Porto Velho é o Remanso do Tucunaré. É claro que ele tem parede pintada, comida boa e atmosfera. Um detalhe: no Remanso, quem é muito famoso, quase famoso ou bastante conhecido nas redondezas, tem seu nome escrito na parede. A lista é extremamente democrática e é dividida por categorias: artistas, políticos, comandantes, comissárias de bordo, lideranças indígenas e religiosas. Meus amigos Renato Barbieri, cineasta e Victor Leonardi, intelectual, escritor e indiana Jones estão na lista. Um dia eu chego lá. Tem tempo que não vou, afinal, não fica exatamente na esquina. Só espero que a Cindy Crawford ainda esteja na porta do banheiro das mulheres.





Em Santa Catalina do Naranjal, no Paraguai, tem painel de azulejo pela cidade e a melhor costela que já comi na vida. A cidade foi fundada por brasileiros que prosperaram no agronegócio. Nem todos. Mas isto é pra outro texto.

O embromil sobre Leon Tolstói lá do começo foi só pra falar da quantidade de painéis com azulejos que existem nas casas e nos restaurantes do bairro onde vivo em São Paulo, a Saúde, que faz parte de uma espécie de grande Tijuca Paulista, que é a Vila Mariana. Só faltam as normalistas e as escolas de samba. Mas tem O Brazeiro, com azulejos plastificados, todos com o galo símbolo do restaurante. Sozinho, não diz muito. Replicado na parede, azulejo sim, azulejo não, ajuda a criar a já tão falada atmosfera. Diz a lenda e a reportagem na parede, que sempre que vinha pra São Paulo, mr. B.B.King encomendava alguns galetos de lá.


Volta e meia me deparo com alguma casa azulejada na Saúde. Seguem algumas:
Esta conta com a proteção de Santo Antônio

Esta sonha em estar nos Alpes Suíços.


Esta quer muito passar o inverno na beira de algum lago bem longe daqui.

Esta também.


Esta eu não consigo nem pensar numa legenda.

Na mesma casa, ao lado, minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá…


E esta queria mesmo era ir pra Portugal de navio. E na verdade ela fica na Av.Santo Amaro.

Ainda tem uma casa com um painel de azulejos sensacional, que homenageia a vinda dos donos, eu presumo, do Líbano para o Brasil, detalhando a chegada no porto de Santos. Mas eu ainda não consegui fotografar. Quando rolar, atualizo. E se você gosta de restaurantes com murais pintados e de casas com azulejos, tem fotos e quer mostrar, manda pra corda bamba que eu publico. o email é: fabpmaciel@gmail.com
A nossa tradição de azulejaria vem de longe, dos árabes que foram pra Península Ibérica e de lá para cá, muita casa portuguesa com certeza foi azulejada. Em São Luís do Maranhão. Em Recife. No Rio de Janeiro. No Palácio Capanema tem um dos painéis mais lindos de todos os tempos. O paredão de Portinari. Os arquitetos modernos brasileiros souberam como ninguém trabalhar com algumas heranças do passado. Carlos Zilio, bamba como artista e como pensador, descreve de forma precisa o painel feito para a sede do Ministério da Educação e Saúde:
Nos azulejos feitos para o palácio, Portinari se libera dos fantasmas da temática social e da necessidade de provar que sabia pintar. E o fato de não haver apelo à ilusão de profundidade, torna o mural mais desconcertante, e convida o espectador a mergulhar naquele mar.


No Rio, a arquiteta Laura Taves comanda desde 2003 um projeto de arte e identidade, em azulejos, feito entre outros, com as crianças da Maré. Liguei pra tirar umas dúvidas, checar fatos, etc. A conversa foi tão bacana que resolvi deixar pra mostrar na próxima postagem, que, ao mesmo tempo vai inaugurar AS GRANDES ENTREVISTAS NA CORDA BAMBA! É isto turma. Domingo tem playlist de carnaval. Divirtam-se na folia. Love, Paz, Axé. E não esqueçam, assim como os azulejos, o amor também é azulzinho.
LINKS, LINKS E MAIS LINKS!
Tenho que confessar: nunca encarei nenhum livro de Tolstói. Já tive alguns na estante. Ficava olhando pra eles e nada…Eu sei, é uma falha grave. Os mais famosos são Guerra e Paz e Anna Karenina. Se a versão filmada servir, aqui vai um trailer sem legendas: Guerra e Paz com a Audrey Hepburn, volta e meia passa na televisão e mostra como e onde Napoleão perdeu as botas. Um século depois seu Adolfo também achou que podia se dar bem e tomou na tarraqueta e perdeu as botas e todo o resto. Jamais subestime o inverno russo.
Procurando o cardápio do Copacabana descobri que ele mudou o endereço. Será que levaram o painel????!!!!! Algum leitor por acaso é frequentador? Alguém pode confirmar esta notícia?
https://restaurantecopacabana.com.br/menu
Muito antes da sofrência, Lupicínio Rodrigues já transformava as dores de amor em sambas espetaculares. No link, ele manda Nervos de Aço, também gravada lindamente por Paulinho da Viola. Mais abaixo Gil e Rildo Hora interpretam Esses Moços. E para quem não sabe, Lupi é autor do belo hino do Grêmio Futebol Porto Alegrense. Lupicínio conseguiu a façanha de fazer o torcedor sofrer já na primeira estrofe com o até a pé nós iremos…
Alceu Valença provavelmente chafurdou solitário em alguma mesa do Luna Bar quando escreveu Solibar:
Um dos responsáveis pela mudança de status do trabalho de Nilton Bravo foi o artista Luiz Alphonsus, que em 1979 fez este curta com o pintor:
O Remanso do Tucunaré tem instagram: https://www.instagram.com/remansodotucunare/
Renato Barbieri é um amigo e parceiro de longa data. Em 1996 fizemos um filme em Moçambique, uma história que vou contar em breve por aqui. No link um filme dele que já virou clássico: Atlântico Negro, na Rota dos Orixás:
Em 2022 Renato lançou nos cinemas o filme Pureza, inspirado na história verdadeira de Pureza Lopes Loyola, dona de uma pequena olaria em Bacabal, no interior do Maranhão. Em 1993, ela decidiu sair à procura de seu filho, que tinha ido trabalhar em um garimpo no Pará e já fazia meses que não dava notícias. Como coração, pressentimento e intuição de mãe nunca falham, ela resolveu agir. Seguiu as poucas pistas que tinha até Marabá e lá, depois de muitas dificuldades acabou encontrando seu filho e descobrindo como funcionava a arregimentação de mão de obra escrava nas grandes fazendas da região. Pureza é até hoje, uma das vozes mais ativas na luta contra o trabalho escravo no Brasil. Dira Paes está um assombro e interpreta Pureza com grande força e dignidade. O filme é obrigatório e pode ser visto no Globoplay:
Vitor Leonardi é muitas coisas: historiador, professor universitário, poeta, escritor, intelectual, roteirista e amigo de muita gente que a gente tem vontade de ser amigo também. O site dele, pra quem quiser saber mais é : https://www.victorleonardi.com.br/
O cardápio do Brazeiro na Saúde:https://www.obrazeiro.com.br/
Ok, vocês sabem quem é, já viram, ouviram, na tv, no rádio, em shows. Mas quando foi a última vez que vocês pararam pra ouvir com calma e atenção o rei cantar Life Ain’t Nothing But A Party? E ainda por cima num disco onde todas as canções são de ninguém menos que Dr.John???? Que está ali também, acompanhando King no piano. Pare tudo, coloque o fone ou aumente bem o volume:
O trabalho do artista Carlos Zilio pode ser conferido em seu site: https://carloszilio.com/
Zilio tem um livro fundamental para quem quer se aprofundar na discussão sobre a arte moderna no Brasil, onde ele antecipa (e para mim, esclarece) muitas das polêmicas que pipocaram por todo o lado no recém comemorado centenário da Semana de 22. O livro se chama A Querela do Brasil, e ele mesmo disponibilizou o pdf em seu site: http://www.carloszilio.com/textos/A_Querela_do_Brasil_2021.pdf
Para quem chegou até aqui, obrigado e até mais. Leiam, escrevam, divulguem, assinem, etc, etc, etc. Abaixo algumas fotos de uma turma da pesada no Jobi, há muito tempo atrás, em uma galáxia nem tão distante.







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