Receita para fazer uma novela turca: Aposte o máximo possível nos arquétipos do bem e do mal e exagere nos antagonismos estéticos e afetivos. Obrigatório: a heroína (linda), o herói (galã) e os vilões e vilãs (quase sempre feios, pero sempre sedutores). Também obrigatório: mocinhos e vilões portando bigode ou barba lenhador paul bunyan século 19, com a parte de baixo da cabeça raspada e o cucuruto com um topetão cheio de gel. Se alguém em 1975 me pedisse uma sugestão de como seria o visual de atores, jogadores de futebol e “empresários” em 2025, eu jamais iria pensar em algo parecido. Seguindo a receita: acrescente uma diferença social, sem que isto evoque qualquer traço de luta de classes. A ascensão virá pela meritocracia, por herança ou pelo casamento boa noite Cinderela calçando o scarpin e abrindo o cadeado do baú da felicidade. Coloque uma criança que sofra pela ausência da mãe ou do pai (que ficou viúvo e nunca mais encontrou uma alma gêmea bondosa e pura) e uma adolescente que ama cachorros ou gatos. Salpique coadjuvantes escadas, como o amigo paspalhão, a amiga assanhada, o garçom filósofo e a avó quituteira. Yargi tem tudo isto. E por isto mesmo é medonha. Mas a mocinha é absurdamente linda e durante uma noite de insônia eu embarquei num transe escapista que foi esquecido no dia seguinte, menos o nanananana da música de abertura e o rosto da Pinar Deniz. Quando entrevistei aqui na corda o meu amigo Guilherme Vasconcelos (na corda bamba ed.114) noveleiro desde sempre e roteirista na emissora do Jardim Botânico ele me contou o seguinte: O melodrama tem esse apelo desde a revolução francesa. Com todos os defeitos e algumas qualidades, é um formato muito característico e os melhores melodramas que são oferecidos hoje são esses antigos da Globo e os turcos. Conclusão: as novelas turcas fazem o encontro das águas, da mocinha do romance de capa e espada, da sofrência ay ay ay mi corazón dos mexicanos (o cinema de lágrimas da américa latina, na ótima sacada do nelson pereira dos santos) e de uma Turquia ocidentalizada, das mulheres que usam salto alto mas respeitam as tradições, já que na Turquia ninguém pode pisar fora da bacia…A nação turca como conhecemos hoje, tem pouco mais de cem anos. Kemal Pacha, também chamado de Mustafá Kemal Ataturk, liderou a revolução que sacramentou a independência da Turquia em 1923 e criou um estado nacionalista, pró-ocidente e secular. Ou seja: Ataturk fez da Tuquia um estado laico. Cem anos depois, manter o estado laico é o mesmo que enxugar gelo. Apesar de estar na constituição. Em um mundo onde quem manda são os lenhadores com cara de cantor sertanejo, é uma lenha defender estado laico na Turquia, na França, no México, no Brasil…O fundamentalismo é a bacia das almas em todo lugar. No fundamentalismo não existe o encontro das águas. Só tem afogamento. Afogamento com gel e gumex. Com ou sem topete. Mas nem tudo pode ser imposto. Ataturk criou uma lei que obrigava os homens a trocarem o fez, aquele chapéu comprido de feltro vermelho (símbolo do império otomano) pelo panamá. Revolução cultural de cima pra baixo quase nunca funciona.



A abertura de Yargi, composta por Toygar Isikli abre e fecha a playlist # 135 que vem nesta corda (o link tá lá embaixo. atenção! é lá embaixo mesmo). Logo depois tem Miriam Makeba. Toda vez que ouço Miriam Makeba eu agradeço aos deuses por ela ter passado por este planeta. Ela fez a minha infância mais feliz com o disquinho de Pata-Pata (tá com pulga na cueca) e o resto da minha vida mais emocionante. Principalmente quando ouço seus discos dos anos 70. Eles são o encontro das águas, da África, do Brasil, de Cuba, de Jorge Ben, Sivuca e Hugh Masekela, da cola de tudo isto com o blues e o soul. Ouçam Quit It, um apelo contra todos os vícios (sem moralismos) e chorem.

Prometi pro meu amigo André Kehdi que esta playlist seria recheada de músicas e canções do Oriente Médio, e ele me disse, ótimo, mas Oriente Médio não se usa mais, isto é coisa de Império Inglês e sim, ele tem toda a razão, grande parte desta merdança toda foi causada pela Inglaterra e seus parças amestrados. Seu Lawrence já tinha cantado a pedra nos Sete Pilares da Sabedoria. Então a caravana segue com Maalem Si Mohamed Chaouqi, Tinariwen, Karnak, Rogério Skylab, Derya Ildirym & Grup Simsek, Kit Sebastian, Nomade Orquestra e chega em Mohamed El Bakkar cantando as glórias de Port Said. Na adolescência comprei alguns destes discos unicamente pelas capas. Elas causavam tão ou mais impacto que as revistas Status e Ele & Ela. Sem falar que era como se eu estivesse ouvindo a trilha de todos os filmes de Aladin, Ali-Babá, 1001 noites etc.


El Bakkar, o líder do Orient Ensemble teve uma história curiosa. Era libanês e atuou como tenor, tocador de oud (um tipo de alaúde) e fez pontas em diversos filmes egípcios. Nos anos 50 se mudou para Nova Iorque, foi morar no Brooklyn e ficou dois anos seguidos na Broadway interpretendo um comerciante no bazar, um vendedor de tapetes cota étnica no musical Fanny até que um dia teve um piripaque no palco do Festival Cultural Americano Libanês em Rhode Island e seu tapete mágico subiu pro céu. Também gravou pela High-Fidelity um disco espetacular, Mohamed El Bakkar and his Oriental Ensemble. A High-Fidelity foi um selo incomum ao longo dos anos 50 e 70. Foram eles que massificaram a venda de discos estereofônicos e tinham um elenco de artistas capaz de deixar qualquer cantora eclética em estado de epilepsia. E o melhor: tudo era embalado como filme b, como subcultura pop, como pulp, ficção científica barata e diversão de baixo orçamento. As capas eram maravilhosas, exageradas, espalhafatosas, sensacionalistas e apelativas, o oposto da elegância e sofisticação cool da blue note, por exemplo. Na capa do disco de Bakkar, a bailarina turca Nejla Ates exibiu o seu corpinho de um metro e trinta de altura em trajes mínimos. Nejla, que na verdade era romena, atuou em filmes de aventura (Rei Ricardo e os Cruzados), ganhou uma estátua no Central Park, perdeu trabalho, virou loira, tentou suicídio duas vezes e morreu de tristeza nos anos 90. Sua vida não renderia uma novela turca nem mexicana. Nejla seria a coadjuvante, a ovelha negra que preferiu cair no rebolation e não há redenção para almas rebolantes nas sesões da tarde. Mas sempre sobra o encontro das águas. E o selo Audio-Fidelity, mesmo que de modo torpe, promoveu uma tremenda pororoca com Louis Armstrong, Lionel Hampton, Pedro Garcia, Lalo Schifrin, Milton Banana e e uma turma da pesada.




Daniel Santiago é produtor e diretor de cinema. Conheci o cara em 1998, num trabalho que não deixou muita saudade, mas que pagou muito bem todo mundo. Estamos tocando alguns projetos e ele me convocou pra uma reunião na área dele: a praça Benedito Calixto. Toco o interfone e o porteiro avisa que ele saiu agora mesmo. Um minuto depois vem a mensagem: bar Jeová, do outro lado da praça. O Jeová é aquele bar que a gente só entra levado por quem conhece. E o Daniel conhece todo mundo naquela pedaço de Pinheiros onde circulam mendigos, atravessadores, modelos, músicos, patricinhas, vagabundos, trabalhadores e o cara conversa com todo mundo, com o catador, com a mulher do escritor famoso que tá passeando com o neto, com a moça da farmácia, com o jornaleiro. Aqui é o encontro das águas, ele me disse. Aqui é um olho no padre e outro na missa. To precisando ir mais ao Jeová. Com o Daniel, claro.


QUANDO O BRASIL ERA MODERNO estreia em Brasília!
quinta, 21 de agosto, 19h no cinepark e depois da sessão, um bate papo com as arquitetas fatah mendonça, aline zim e liz sandoval.

e agora todo mundo cantando junto: mensalão do tarcísio, de quem? do tarcísio, de quem? e o que a folha diz? não diz nada, nadinha, porra nenhuma. próxima estação ultrafarma. desembarque pelo lado direito.

Tive uma vez na casa de Claudinho Pereira, logo antes do show do Rock Grande do Sul. Eu tinha 17 anos e era incrível conhecer uma família onde pai, mãe e filhas falavam a mesma língua que eu e meus amigos. Na real, devia ser uma família como todas as outras, com as questões normais de qualquer família. Talvez sim, mas certamente não para uma penca de outras coisas. Claudinho apostava na moçada. Não cantava de galo sua experiência (mil anos luz na frente da gente). A aposta dele deu certo e o resto virou história. Lá por 2012 minha mãe foi me visitar no Rio e me levou de presente a biografia dele (santa ironia, batman) organizada pelo chapa Márcio Pinheiro. Acho que a turma deveria fazer um show de despedida-celebração. Ele ia gostar.
Na corda bamba edição 163 (com a playlis 135) está na rede. Quem quiser apoiar este blog destrambelhado é só descer nos botões lá embaixo e assinar nas opções de 10 ou 100 reais. E quem quiser colaborar com qualquer valor, eu disse, qualquer valor mesmo, é só fazer um pix para a chave: fabpmaciel@gmail.com
A foto da capa desta corda eu fiz no bar Jeová. Sem testemunhas.
Super Obrigado Alê Brizuela, pela chegada na corda.
Saravá!

LINKS! LINKS! E MAIS LINKS!
yargi: ia colocar o trailer aqui, mas o youtube bloqueia. fica pra próxima.
o filho de simbad, não tem legenda, mas quem liga pra isto?
o cinema de lágrimas da américa latina:
samia gamal rivalizava com nejdla, abaixo, ela dançando em ali baba:
na ponta da agulha: claudinho pereira e márcio pinheiro
na playlist 135:
toygar isikli # miriam makeba# maalem si mohamed # tinariwen # karnak # rogério skylab # derya # kit sebastian # nomade orquestra # mohamed el-bakkar # jorge mautner & robertinho do recife # the gaturs # luedji luna # sade # the the # the sorceres # el-funoun palestinian popular dance troupe # john martyn # ray & his court # terry reid # brian eno & david byrne # rhoda dakar # antibalas # tassia reis # khaled # marcelo lobato # céu # erykah badu # walt dickerson quartet # aguilar e banda performática # the persuasions # ibrahim al masri # ripple # odissey # fanga # letieres leite & orquestra rumpilez tiago araripe # george ka # milton banana # majid bekkas # pedro garcia # santiago córdoba maquinado # chebi sabbah # gilberto gil
e a playlist 135!

Deixe um comentário